“Com muita dor perdemos nossos avós, sábios e líderes por causa desta pandemia (…) Estamos às portas de um etnocídio, porque o ecocídio já tem muito tempo; com a destruição da natureza, nossa casa, nossa mãe”.
Com estas emotivas palavras, o coordenador das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA), José Gregorio Mirabal, do povo amazônico curripaco denunciava durante o Diálogo de Alto Nível sobre os impactos da COVID-19 nos povos indígenas a situação na Amazônia e pedia um “diálogo sincero” entre governos e comunidades indígenas.
As palavras de Mirabal refletem a dureza do golpe da pandemia sobre os povos indígenas da América Latina, uma região que ainda sente os efeitos da crise econômica que golpeia com mais força àqueles que, como as comunidades indígenas, já se encontravam em situação de maior desvantagem antes da COVID.
Um Relatório da Plataforma Indígena Regional frente à COVID-19 (PIR) explica como a pandemia aprofundou a pobreza, a desigualdade, as barreiras de acesso à educação e à saúde, assim como a criminalização e a discriminação contra os povos indígenas por conflitos territoriais, causando retrocessos nos direitos alcançados em décadas passadas.
“Estamos experimentando estancamentos e retrocessos em vários campos. A pandemia despiu nudos críticos das sociedades e dos Estados latino-americanos, assim como um modelo econômico que impacta, de forma negativa, as populações indígenas”, explica a líder miskita nicaragüense Myrna Cunningham, primeira vice-presidenta do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e o Caribe (FILAC).
A pandemia COVID-19 aprofundou a pobreza, desigualdade, exclusão e discriminação contra os povos indígenas, o que representa um risco de estancamento e retrocessos em seus direitos
Segundo cifras da CEPAL, 46,7% dos lares indígenas da região vive em situação de pobreza e 17,3% em pobreza extrema, o que equivale ao dobro e ao triplo das respectivas taxas para a população não indígena. Esta situação se agravou pela perda de meios de vida por causa da crise econômica que seguiu à COVID.
A ‘questão territorial’
La gobernanza de los territorios indígenas ancestrales y el control de los recursos naturales que allí se encuentran es un asunto directamente relacionado con el ejercicio de los derechos colectivos de las comunidades indígenas, así como a su identidad, cultura y su derecho de autodeterminación.
A governança dos territórios indígenas ancestrais e o controle dos recursos naturais que ali se encontram é um assunto diretamente relacionado com o exercício dos direitos coletivos das comunidades indígenas, assim como da sua identidade, cultura e direito de autodeterminação.
Um recente relatório conjunto do FILAC e da CEPAL assegura que, apesar de este assunto constituir “o núcleo duro dos direitos dos povos indígenas, continua a ser o componente mais atrasado do exercício de seus direitos em todos os países da região”.
Entre 2015 e 2019, a CEPAL identificou 1.223 conflitos em 13 países da América Latina, com relação aos direitos territoriais dos povos indígenas e vinculados a indústrias extrativas, como mineração, hidrocarbonetos, energia e os monocultivos. De fato, quase dois terços (63,7%) destes conflitos estão originados pela mineração (43,5%) e pelos hidrocarbonetos (20,2%).
A governança dos povos indígenas sobre territórios e recursos naturais é o núcleo duro dos direitos dos povos indígenas e uma das questões mais atrasados na prática
Desde esta realidade se compreendem melhor as emocionadas palavras do líder da COICA durante os piores momentos da COVID-19. “Conseguimos enfrentar esta pandemia porque ainda temos a governança dos nossos territórios, estamos vivos graças à medicina tradicional e à solidariedade internacional e entre irmãos indígenas (…) Necessitamos uma selva de pé, não uma selva destruída, porque é fundamental para a vida, não só da América Latina, senão de todo o planeta.
Dois anos depois da emergência sanitária, as organizações indígenas continuam pedindo mais espaços de participação nos planos nacionais de desenvolvimento e nos planos de recuperação pós-COVID, assim como pedem que sejam considerados os seus conhecimentos e saberes ancestrais na abordagem dos desafios nacionais, regionais e globais.
“A humanidade enfrenta várias crises: climática, energética, hídrica, econômica, alimentar e de valores que afeta os países em desenvolvimento e, em especial, os povos indígenas. É requerida uma transformação estrutural para salvar a humanidade. Os povos indígenas queremos compartilhar nossa ciência e a economia da mãe Terra”, afirma Freddy Mamani, presidente do FILAC e vice-ministro de Exteriores da Bolívia.
Um roteiro para a ação
Por mais contraditório que pareça, a Ibero-América é uma das regiões mais avançadas quanto ao reconhecimento jurídico dos direitos dos povos indígenas que, em alguns países, chega inclusive a nível constitucional. O verdadeiro desafio, no entanto, é passar desse reconhecimento em papel ao cumprimento prático destes direitos.
Para transitar o caminho dos direitos aos fatos, a Ibero-América conta com um roteiro respaldado, ao mais alto nível político, pelos governos na XXVI Cúpula Ibero-americana em La Antigua, Guatemala. Trata-se do Plano de Ação da Ibero-América para a implementação dos Direitos dos Povos Indígenas, cujos avanços são avaliados, pela segunda vez, neste mês de julho no III Encontro de Altas Autoridades de Povos Indígenas da Ibero-América.
Por que este plano significa um antes e um depois? Pela primeira vez na Ibero-América, governantes e delegados indígenas junto a representantes de organizações internacionais e movimentos sociais convieram ações coordenadas para superar a brecha entre os direitos reconhecidos e a realidade vivida pelos povos indígenas, explica Jorge Luis Díaz Scharff, da Área de Coesão Social da Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB).
Também é a primeira vez na história das Cúpulas Ibero-americanas e do próprio FILAC que Governos e representantes indígenas acordam um roteiro com ações, políticas e objetivos específicos como:
- Ajustar os marcos normativos e institucionais nacionais aos padrões internacionais de direitos dos povos indígenas
- Incluir a perspectiva dos povos indígenas nos planos nacionais de implementação da Agenda 2030
- Estabelecer mecanismos permanentes de participação, diálogo e consulta entre Estados e povos indígenas
- Visibilizar e fortalecer a participação plena e efetiva das mulheres indígenas na geração de políticas públicas para prevenir diferentes formas de violência contra elas.
O mencionado Plano de Ação estabelece um período de dez anos para seu pleno cumprimento em 2028, ainda que preveja ações, produtos e resultados a curto, médio e longo prazo. Apesar das restrições e confinamentos durante em 2020 e 2021, o FILAC e a SEGIB continuaram trabalhando para avançar na implementação, ainda que reconheçam que “a pandemia modificou totalmente as previsões e afetou muitos dos processos encaminhados”, indica o Primeiro Relatório de Avanços publicado em março de 2021 avaliando o período 2018-2020.
O Plano de Ação para os Direitos dos povos indígenas tem uma vigência de 10 anos e supõe a implementação de ações nos planos nacionais de desenvolvimento dos países
Um aspecto chave para que este plano, que é de caráter regional, possa ser cumprido é a incorporação das suas propostas, ações e políticas aos planos nacionais de desenvolvimento de cada país e a assignação dos recursos que permitam fazê-las realidade. Para isso, explicam desde a SEGIB e o FILAC, o diálogo entre autoridades estatais e povos indígenas é essencial.
Momento para o diálogo
Durante I Encontro de Altas Autoridades da Ibero-América sobre Povos indígenas, governos e organizações indígenas acordaram “estabelecer e fortalecer os mecanismos permanentes de diálogo e concertação dos povos indígenas através de suas próprias formas organizativas com a institucionalidade estatal e garantir procedimentos de consulta prévia, livre e informada em toda matéria relacionada aos interesses dos povos indígenas e seus territórios”, destaca a Declaração de IXIMULEU que dá vida ao Plano de Ação.
Precisamente nesse vital diálogo é onde a SEGIB tem um papel crucial, “para gerar junto ao FILAC espaços de articulação que somem esforços nacionais e regionais mediante um trabalho construtivo entre governos ibero-americanos e povos indígenas”, explica Díaz Scharff.
Nesta mesma linha, afirmava a primeira vice-presidenta do FILAC, Myrna Cunninghan citando o vice-presidente da Bolívia: “não sobrevivemos para nos lamentar senão para devolver a esperança. É o momento de dialogar, porque sem diálogo não há vida e sem vida não há diálogo possível. Temos de dialogar em um momento complexo para nossos povos”.