“Não sobrevivemos para lamentar-nos, senão para devolver esperanças”. Citando a vice-presidente da Bolívia, a dirigente miskita nicaraguense Myrna Cunningham se dirigia com estas palavras a um grupo de alunos que se especializam em direitos dos povos indígenas e cooperação. Explicava-lhes as propostas dos povos indígenas para construir um melhor tempo após o duro golpe da pandemia que piorou umas condições de vida que, já antes da crise, eram sumamente difíceis.
Apesar do reconhecimento jurídico de seus direitos, a realidade de pobreza, exclusão, discriminação e invisibilidade na que vivem cerca de 58,2 milhões de pessoas indígenas de mais de 800 povos enfrenta o desafio de “converter os direitos em fatos e as declarações em ações” em toda Abya Yala, nome do continente americano que, em língua Kuna, significa “terra viva e em florescimento”.
Em momentos em que os países ibero-americanos colocam em funcionamento seus planos de recuperação pós-COVID, os povos indígenas não querem voltar à anterior normalidade e propõem um novo modelo de desenvolvimento com identidade e relações de cooperação que transcendam a lógica doador-receptor para fazer realidade esse “florescimento” que promete o nome Abya Yala.
“Mudar com sabedoria” e com pertinência cultural. Esta é a proposta do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e o Caribe (FILAC), que é um dos resultados mais emblemáticos das Cúpulas Ibero-americanas e que, neste 24 de julho, completa 30 anos defendendo os direitos dos povos indígenas.
Em um artigo publicado nesta nova edição do Portal Somos Ibero-América, Gabriel Muyuy, secretário técnico do FILAC assegura que “voltamos à cidade de Madri (onde foi aprovada a criação do organismo) para impulsionar políticas e estratégias de cooperação, em um momento complexo para os direitos de nossos povos”.
Um plano para cumprir os direitos
Precisamente esta semana, povos indígenas e governos da Ibero-América se reúnem na capital espanhola para avaliar os avanços do Plano de Ação da Ibero-América para a Implementação dos Direitos dos Povos Indígenas aprovado durante a XVI Cúpula Ibero-americana.
Esta planificação regional, a dez anos, assinala um marco na história das Cúpulas Ibero-americanas e do próprio FILAC, ao ser esta a primeira vez que Governos e povos indígenas acordam um roteiro regional com objetivos definidos para cumprir os direitos dos povos originários.
Os povos indígenas propõem um modelo de desenvolvimento com identidade cultural que permita “mudar com sabedoria” para caminhar rumo a um novo tempo na América Latina.
O Plano de Ação consolida a Conferência Ibero-americana como espaço de diálogo construtivo entre representantes indígenas, governos, agências de cooperação, organismos multilaterais e atores sociais para avançar políticas e ações que melhorem a situação real dos povos indígenas.
Dado este documento ser de carácter regional, o desafio dos próximos anos é transladar estes objetivos e ações às estratégias nacionais de desenvolvimento e implementação da Agenda 2030, com recursos orçamentários que respaldem seu cumprimento.
Línguas indígenas e saberes ancestrais
Um dos resultados concretos do Plano de Ação é a inicialização, em fevereiro de 2022, do Instituto Ibero-americano de Línguas Indígenas (IIALI) que hoje forma parte do sistema de cooperação ibero-americana. Até o momento, dez países participam no IIALI: a Bolívia, onde se encontra a secretaria técnica, Colômbia, Guatemala, Equador, El Salvador, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai e Peru.
Na América Latina, um terço das 550 línguas originarias estão em perigo de desaparecimento devido à falta de uso diário e à carência de educação intercultural bilingue. 20% das línguas indígenas em perigo estão presentes em vários países ibero-americanos, pelo quê, sua revitalização requer ações e políticas coordenadas entre os diferentes Estados.
A cooperação entre governos, povos indígenas, comunidades linguísticas e instituições acadêmicas é precisamente uma das contribuições chave do IIALI para resgatar e revitalizar as línguas indígenas e, com elas, todo o valioso patrimônio cultural e conhecimentos ancestrais que elas acarretam.
A recuperação das línguas e os conhecimentos indígenas têm relação direta com a ideia de “mudar com sabedoria” para um desenvolvimento com identidade proposto pelos movimentos indígenas, já que esses conhecimentos e saberes podem contribuir a enfrentar desafios mundiais como a mudança climática, a perda de biodiversidade e, em geral, apoiar o cumprimento da Agenda 2030.
Educação para a Equidade
Ao longo das últimas décadas, os povos indígenas apostaram pela formação de capacidades e lideranças de suas comunidades, movimentos, organizações e dirigentes para que suas prioridades e visão sejam consideradas nas políticas públicas nacionais e internacionais. “A incidência dos povos indígenas nos processos de decisão é uma das prioridades do FILAC, explica seu presidente Freddy Mamani.
Esta é a missão do Programa de Educação para a Equidade, onde se emolduram a Universidade Indígena Intercultural (UII), uma rede colaborativa de universidades presentes em diferentes países que se converteu em uma sementeira de líderes que impulsionam os direitos dos povos indígenas em cada um de seus países e em diferentes espaços de decisão.
A maioria daqueles que levam a voz dos povos indígenas aos espaços de toma de decisões formaram e se formaram nesta universidade ou nela participaram compartilhando experiências e trajetórias que inspiram a mudar o mundo.
A imparável luta das mulheres indígenas
Grandes mulheres como Rigoberta Menchú, Bartolina Sisa, Myrna Cunningham, Leonilda Zurita e muitas outras fizeram importantes contribuições à paz, à reconciliação ou à defesa da natureza e dos direitos humanos na América Latina. Suas vozes chegaram longe porque suas vidas foram um testemunho.
É o caso da líder maya k’ché Otilia Lux de Cotí, uma das referências mais importantes da América Latina na luta pela igualdade das mulheres indígenas e uma das protagonistas na construção da paz em sua natal Guatemala .Em entrevista com o Portal Somos Ibero-América, Otilia Lux relata como a discriminação e o racismo que sofreu em sua juventude inspiraram uma luta que ainda continua dando frutos em favor dos direitos das mulheres indígenas.
Otilia Lux compartilha seu testemunho de vida e luta pelos direitos das mulheres indígenas e envia uma mensagem à juventude indígena: “fortaleçam sua liderança em defesa de seus direitos individuais e coletivos”.
Apesar das inspiradoras trajetórias de mulheres indígenas que o FILAC recuperou no livro “Histórias de Mulheres de Paz”, a realidade é que “as mulheres indígenas na América Latina trabalham contra a corrente e enfrentam condições estruturais adversas que se agudizaram com a crise da pandemia”, advertem desde o FILAC.
Por isso, um dos objetivos do Plano de Ação da Ibero-América é visibilizar e fortalecer a participação das mulheres indígenas nas políticas públicas, com especial ênfase na prevenção das diferentes formas de violência.
Mudar o rumo para salvar o planeta
A proposta de “mudar com sabedoria” para um desenvolvimento com identidade cultural vai diretamente vinculada ao conceito do “Bom Viver-Viver Bem”, que para as culturas indígenas representa o equilíbrio com a Mãe Terra.
Os povos indígenas não só estão lutando para que seus direitos, tantas vezes adiados, se cumpram, senão que também pedem que seus conhecimentos e saberes sejam considerados para impulsionar modelos de desenvolvimento que permitam reconduzir o rumo e deter a destruição do planeta.
Neste sentido, o presidente do Foro Permanente sobre questões indígenas da ONU, Dario Mejía, é muito claro ao afirmar em seu artigo “Povos Indígenas, agentes de mudança frente ao aquecimento global”, que a preservação da biodiversidade e o desafio da crise climática não podem ser abordadas sem o respeito aos direitos territoriais e de livre determinação dos povos indígenas, porque “provaram sua efetividade no cuidado e na conservação da vida”.
O Relator Especial da ONU sobre os Direitos Indígenas, Francisco Calí recorda, por sua parte, que “a humanidade deve aos povos indígenas a preservação de 80% da biodiversidade do planeta”.
Em seu artigo pelo Dia Internacional dos Povos Indígenas, no próximo 9 de agosto, Calí se pergunta quais são os motivos para celebrar? O Relator da ONU faz sua a voz de cerca de 60 milhões de pessoas indígenas que aspiram que seu Dia Internacional seja uma data na que “possamos celebrar verdadeiros avanços” e não seja necessário denunciar, ano após ano, o incumprimento de direitos.
“Os povos indígenas continuam experimentando exclusão. Romper estes núcleos de discriminação é indispensável se devemos construir, como diz o lema da próxima Cúpula Ibero-americana a se celebrar em março de 2023, “Juntos rumo a uma Ibero-América justa e sustentável”, uma região que funcione para todos e onde “ninguém fique para trás”.