Neurodireitos no Chile: consagração constitucional e regulação das neurotecnologias

Neurodireitos no Chile: consagração constitucional e regulação das neurotecnologias

Regular neurotecnologias é uma recomendação, não só desde a academia especializada, senão também uma preocupação de organismos internacionais e de direitos humanos. Neste sentido, o Chile é um país pioneiro a nível mundial em consagrar a proteção dos neurodireitos a nível supralegal com a modificação do artigo 19-numeral 1 de sua Carta Magna. Em 2020 os senadores Guido Girardi, Carolina Goic, Francisco Chahuán, Juan Antonio Coloma e Alfonso De Urresti apresentaram uma moção de projeto de reforma constitucional junto a um projeto de lei de regulação de neuro tecnologias, o qual está atualmente em tramitação no Congresso Nacional.

Este último possui um conteúdo muito mais detalhado que discute o impacto de um uso inapropriado de neuro tecnologias, especialmente aquelas de uso comercial e aprofunda em aspectos como a responsabilidade, o consentimento, entre outros. Apesar de compartilhar objetivos similares, estes projetos coloquialmente conhecidos como “projetos de neurodireitos” são dois instrumentos jurídicos com hierarquias diferentes.

A moção de reforma constitucional foi sancionada a 25 de outubro de 2021, convertendo-se na Lei Nº 21.383 que “modifica a Carta Fundamental, para estabelecer o desenvolvimento científico e tecnológico ao serviço das pessoas”. Tal lei consta de um artigo único que modifica o número 1 do artigo 19 da Constituição Política da República do Chile na seguinte forma:

“…O desenvolvimento científico e tecnológico estará ao serviço das pessoas e será realizado com respeito à vida e à integridade física e psíquica. A lei regulará os requisitos, condições e restrições para sua utilização nas pessoas, devendo resguardar especialmente a atividade cerebral, assim como a informação dela proveniente…”

Quais são as implicações desta reforma?

Tanto a Lei Nº 21.383, já em vigor como o projeto de lei ainda pendente de sanção, busca resguardar os direitos fundamentais do uso inadequado de neurotecnologias diretas como pode ser a interface máquina-cérebro, sem prejuízo das indiretas como as transformações do criador do Facebook Mark Zuckerberg quem anunciou toda uma experiência de Inteligência Artificial (IA) através do Metaverso o  que poderia ocasionar danos à neuroplasticidade, principalmente a infantil.

Estas aplicações tecnológicas podem produzir alterações no desenvolvimento crítico das crianças e dos adolescentes a partir de modificações negativas no sistema nervoso central que alterem a continuidade psicológica ou autenticidade (a menos que seja desejável terapeuticamente), ou bem alterações na capacidade de discernimento, livre arbítrio e autonomia do sujeito ou bem devido a intromissões na privacidade mental.

Ainda, a lei agrega uma categoria denominada neurodados, que em definitiva, para o legislador merece uma proteção operativa distinta dos demais dados, especialmente aqueles do grupo de dados sensíveis que protegem a privacidade. Por esta razão, a lei de reforma constitucional fala de “resguardar especialmente a atividade cerebral, assim como a informação dela proveniente”.

A reforma à Carta Fundamental tem várias implicações. Por exemplo, toda pessoa que provar ter recebido dano em sua atividade cerebral, independentemente do agente causal, poderá impetrar as ações constitucionais para reestabelecer o império do direito e outorgar a devida proteção. A consagração constitucional permite, além disso, esclarecer dúvidas interpretativas acerca dos novos direitos (neurodireitos) consagrados constitucionalmente, tanto a nível doutrinal como jurisprudencial.

Ainda, esta reforma poderá orientar a tarefa do legislador, tanto na lei que se encontra pendente como em outros corpos legais convergentes, por exemplo o projeto de lei de regulação de Plataformas Digitais, caso se converta em lei. Poderá também unificar critérios jurisprudenciais, principalmente, devido a que os neurodireitos são uma construção muito recente e emergente, na qual ainda não são consideradas todas as implicações desde o ponto de vista dos direitos humanos.

Por outro lado, a reforma implica um claro sinal de proteção aos usuários de neurotecnologias lúdicas, ou seja, aquelas neurotecnologias não terapêuticas que os usuários utilizam como neuromelhora cognitiva, por exemplo a prática das smart drugs (neuroenhancement), o que significa que a pesquisa científica do sistema nervoso central em seres humanos, assim como a inovação neurotecnológica poderia ser impactada de alguma maneira pela regulação protetora de direitos humanos emergentes, que ao positivizá-los na Carta Magna outorga-lhes um caráter de fundamentais.

A reforma envia a mensagem de que no Chile existe consenso em proteger a dignidade da pessoa frente ao uso malicioso ou negligente de neurotecnologias

Não se pretende desincentivar a inovação tecnológica nem a pesquisa neurocientífica, senão que estas sejam realizadas com pleno respeito aos direitos fundamentais e informando a população sobre seus efeitos, riscos e benefícios. Assim então, fica claro que, desde os produtores até aqueles que implantarem neurotecnologias em usuários, consumidores ou pacientes deverão considerar fortemente o risco de tais intervenções com as consequentes responsabilidades que a lei estabelecerá. 

A nível internacional, a posição majoritária na academia especializada celebra esta iniciativa e inclusive existem claras tentativas de emulá-la. No entanto, a iniciativa de reforma constitucional como a chilena é inédita no mundo.

Desafios pendentes

Em setembro de 2022, foi realizado no Chile um plebiscito através do qual a cidadania rechaçou, em um processo absolutamente democrático, a proposta de nova Constituição Política. Isto implica que, atualmente, está vigente a Constituição de 1980 com todas suas reformas posteriores, incluindo a relativa aos neurodireitos.

A rejeição foi ao conteúdo do texto, de modo que politicamente o Chile regulamentou a busca de 24 especialistas aos quais encomendou a redação de uma nova Constituição Política. É de se esperar que os especialistas mantenham a recente reforma de neurodireitos, já que é um acerto prospectivo do Chile do futuro.

Por outro lado, se o projeto de lei de neurodireitos pudesse ser sancionado e seguir a linha de técnica legislativa francesa, ou seja,  não teria uma hierarquia constitucional, senão simplesmente legal, em todo caso, de natureza hard law que outorgará uma proteção, tanto ao usuário de neurotecnologias terapêuticas como lúdicas, mas sem contar com as ações constitucionais propriamente.

Neste sentido uma proteção supra legal dá uma certeza jurídica incontestável, por assim dizer, de difícil modificação ou derrogação, como é o caso de uma regulação no código sanitário, como a estabelecida pela legislação francesa.

Outras pendências são continuar com a alfabetização da sociedade civil sobre os riscos do uso inapropriado de neurotecnologias diretas e indiretas. Além disso, a academia deve seguir incorporando os avanços das neurociências à prática e à teoria jurídica (Neurolaw).

Finalmente, é necessário seguir estimulando a discussão acadêmica para precisar o sentido e alcance dos neurodireitos; em que medida estes deveriam ser considerados novos direitos emergentes ou bem reformulações de direitos já existentes e quais são os limites conceituais entre cada um deles.


Neurodireitos no Chile: consagração constitucional e regulação das neurotecnologias, Agenda Estado de Direito, 2021/12/13. Atualizada pela autora em janeiro de 2023.

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