A América Latina é a região do mundo com maior potencial para mitigar a mudança climática através da transformação dos sistemas alimentares e das soluções baseadas na Natureza (SbN), que incluem a agricultura regenerativa, a silvicultura, as paisagens bioalimentares, a restauração de ecossistemas ou os sistemas agroflorestais, entre outras.
Esta é uma das conclusões recolhidas pelo relatório “Sistemas Alimentares e mudança climática na Ibero-América”, realizado pelo Observatório La Rábida de Desenvolvimento Sustentável e mudança climática para a Ibero-América e apresentado no marco da XXVIII Cúpula Ibero-americana. O documento serviu como insumo para os trabalhos que levaram à aprovação, pelas e pelos Chefes de Estado dos 22 países ibero-americanos, da Rota Crítica para uma Segurança Alimentar sustentável e inclusiva na Ibero-América e a Carta Meio ambiental Ibero-americana.
Rosa Castizo, autora principal do estudo e coordenadora do Observatório La Rábida explica em entrevista com o Portal Somos Ibero-América a vinculação direta entre mudança climática e sistemas alimentares, assim como a grande oportunidade que a transformação destes representa para enfrentar a tripla crise ambiental: mudança climática, perda de biodiversidade e contaminação.
“A alimentação se encontra profundamente afetada pela mudança climática e é, ao mesmo tempo, o setor que oferece maiores oportunidades para mitigá-lo, especialmente na região da América Latina”, assegura a especialista.
“Transformar a forma em que nos alimentamos é uma oportunidade de bem-estar para a Ibero-América, sua população e seus ecossistemas (Rosa Castizo)
Os eventos extremos vinculados à mudança climática estão impactando toda a Ibero-América e se prevê que se intensifiquem, explica Castizo. Essa realidade representa o incremento das temperaturas e das secas, assim como o aumento do nível do mar, a erosão costeira e a acidificação dos oceanos e lagos. E, ao mesmo tempo, a maior severidade das secas, junto com a diminuição do abastecimento de água afetam à produção agrícola e à pesca, com o consequente prejuízo na segurança alimentar.
Por sua parte, os sistemas alimentares, que sofrem as consequências da mudança climática, são responsáveis de, ao menos, 30 % das emissões globais de gases de efeito estufa (GEI) que o provocam. Esta cifra se eleva a 68% para o caso da Ibero-América, onde duas terceiras partes das emissões estão vinculadas à produção, transporte, transformação ou desperdício alimentar.
De forma específica, a produção alimentar concentra 45% do total das emissões dos sistemas alimentares na Ibero-América, enquanto o uso e mudança de uso do solo representa 38%, destaca o terceiro relatório do Observatório La Rábida.
Subnutrição e desperdício alimentar
Em 2021, a América Latina registrou a prevalência de fome mais alta desde 2006 e afeta 8,6% da população, ou seja, 56,5 milhões de pessoas. A insegurança alimentar moderada ou grave alcançou 40,6% da população: 268 milhões de pessoas, uma terrível cifra por cima da média mundial. Assim era alertado, há poucas semanas, pelo subdiretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Mario Lubetkin em um artigo publicado neste portal.
Ao problema da falta de alimentos se soma o fato de que uma alimentação de qualidade resulta inacessível para boa parte da população da América Latina: 131 milhões de pessoas não podem aceder a uma dieta saudável em uma região onde a cesta básica saudável registra o custo mais alto (3,89 dólares por pessoa ao dia) em comparação com as demais regiões do mundo.
A fome e a desnutrição alcançam cifras recorde na América Latina: 56,5 milhões de pessoas (8.6% da população) está afetada pela fome e 22% da população não pode custear uma dieta saudável
Portanto, às repercussões ambientais do atual modelo alimentar, se soma “a tripla carga de desnutrição que padecemos como população ibero-americana, onde as cifras de obesidade na infância se aproximam cada vez mais às de desnutrição”, explica Castizo, em referência às cifras da FAO.
Ainda assim, o último relatório do Observatório La Rábida visibiliza um dado chamativo: uma terceira parte dos alimentos (uns 1.300 milhões de toneladas anuais) se perdem ou são desperdiçados na Ibero-América, o que soma um impacto meio ambiental negativo sem cumprir a função social de alimentar a população de forma nutritiva e saudável.
“Evitar este desperdício, não só reduziria as emissões e a pressão sobre os ecossistemas, ao mesmo tempo que contribuiria na luta contra a insegurança alimentar e por uma alimentação mais saudável da população”, explica a coordenadora do Observatório La Rábida.
Cómo transformar os sistemas alimentares?
Resulta paradoxal que em uma região que produz 14% de todos os cultivos do mundo e que representa 13% da produção pesqueira e pecuária mundial, grande parte da população não tenha disponibilidade de alimentos suficientes e saudáveis, aponta a coautora do relatório.
“Ante esta realidade, nos parece muito importante oferecer dados, respostas e alternativas que permitam acelerar a transformação de nossos sistemas alimentares para frear a mudança climática e garantir o bem-estar da população”, sublinha.
A fim de consegui-lo, o terceiro relatório do Observatório La Rábida, realizado com a colaboração do Programa das Nações Unidas para o Meio ambiente (PNUMA) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), aponta à necessidade de impulsionar cadeias mais curtas de produção e consumo, assim como dietas mais sustentáveis, diversas e saudáveis.
“A complexidade dos sistemas alimentares e a dimensão do desafio da mudança climática requer atuar a diferentes níveis. O primeiro destes níveis se refere às pessoas, que no relatório denominamos inclusão social, e equidade de gênero”, explica Castizo.
Também é crucial avançar rumo a uma produção e um abastecimento mais sustentáveis, incentivar a transformação de nossas dietas e implementar as conhecidas como Soluções baseadas na Natureza (SbN) como agricultura regenerativa, agro reflorestação, restauração de ecossistemas ou pastoreio inteligente. Estas atividades têm o grande potencial de capturar CO2, gerar empregos e estimular uma nova economia regenerativa, revela Castizo.
A transição para novos sistemas alimentares passa por impulsionar cadeias mais curtas de produção e consumo, dietas mais sustentáveis, diversas e saudáveis, assim como impulsionar as conhecidas como Soluções baseadas na Natureza (SbN).
“Pela urgência das medidas necessárias, incluímos no relatório uma serie de recomendações em quatro níveis de ação que são requeridas para que os sistemas alimentares cuidem, tanto das pessoas como do planeta, destacando as boas práticas que já sucedem na Ibero-América e as recomendações para melhorar”, explica a coautora do documento.
Aposta meio ambiental na Ibero-América
Ao longo dos últimos anos, a resposta ao desafio meio ambiental, que não só inclui a mudança climática, senão a perda de biodiversidade e a contaminação, se converteu em uma prioridade de ação a nível ibero-americano. Este caminho tomou forma em 2018 quando na Cúpula de La Antigua, Guatemala, decidiu-se alinhr a ação ibero-americana para o cumprimento da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, algo que se materializou com a reativação da Conferência Ministerial de Meio ambiente, convocada em setembro de 2020, após onze anos de pausa.
A XXVIII Cúpula Ibero-americana desenvolveu ainda mais este compromisso ambiental, após a aprovação ao mais alto nível político da Carta Meio ambiental Ibero-americana um produto do diálogo entre governos, especialistas, organismos internacionais, redes meio ambientais especializadas e a evidência científica aportada pelo Observatório La Rábida que, desde 2018, elabora um relatório bienal que acompanha o trabalho do sistema ibero-americano.
Também na última Cúpula Ibero-americana se dá luz verde para que a dimensão meio ambiental seja transversal à ação de toda a cooperação ibero-americana e se reforça a proteção do meio ambiente como uma das áreas prioritárias do III Plano de Ação Quatrienal da Cooperação Ibero-americana (PACCI).
O plano de ação da cooperação ibero-americana 2023-2026, também aprovado na passada Cúpula de Santo Domingo, consolida o alinhamento da Ibero-América à Agenda 2030, onde a alimentação e a promoção de sistemas alimentares sustentáveis ocupam um lugar central.
Por tudo isso, segurança alimentar e mudança climática são dois desafios globais que enfrentam, em maior ou menor medida, todos os governos da região. Dali a importância deste estudo e da Rota Crítica para uma Segurança Alimentar, documentos que impulsionam uma transformação profunda dos sistemas alimentares para avançar rumo a uma Ibero-América sem fome que, além disso, preserve o meio ambiente para as próximas gerações.