“Proteger as populações e os povos originários e garantir seus modos de vida não é somente uma questão constitucional da lei do Brasil, é uma estratégia ambiental”, explica o ecólogo brasileiro e cofundador da Reenvolver: biodiversidade da mesa, Jerônimo Villas-Bôas. O território se conserva melhor quando aqueles que historicamente o habitaram fazem o que sempre fizeram. Nessa linha, o especialista destaca que a principal conexão entre cultura e meio ambiente são “os sistemas alimentares”.
A biodiversidade, aponta Villas-Bôas, “não é somente natural e selvagem: é uma construção cultural e social”. “Os povos originários têm um papel importantíssimo porque estão produzindo biodiversidade através de seus sistemas alimentares desde sempre, e porque enriquecem o território que habitam e o sustentam através de sistemas de produção diversos”, conclui Villas-Bôas. O especialista adverte como a padronização dos cultivos e a homogeneização da alimentação de uma população mundial que se transferiu do campo para as cidades têm um impacto direto na conservação do território.
“Se entramos em um mercado em uma cidade, percebemos essa padronização. 60% das calorias que consumimos procedem de apenas três variedades de grãos, enquanto os povos originários tiveram sempre como base a diversidade e seguem tentando cultivar suas sementes, suas variedades…”, detalha. “As práticas culinárias conjugam história, memória, manejo do meio ambiente, intercâmbios culturais, economia, papéis de gênero e gostos particulares, o que permite pensar o patrimônio cultural imaterial como recurso para o desenvolvimento, assegurando a alimentação e permitindo a resiliência das comunidades diante dos desafios da modernidade, da globalização e da mudança climática”, assinalava em um artigo publicado pela UNESCO o antropólogo Miguel Hernández.
“50% da Amazônia brasileira são áreas protegidas por algum tipo de reconhecimento legal, como terras indígenas ou unidades de conservação de uso sustentável, onde estão os povos originários que lutaram por esses territórios”, explica Villas-Bôas. “Se juntar essas áreas, há aproximadamente dois milhões de quilômetros quadrados, quase o tamanho da Argentina ou do México. E essas áreas estão sendo mantidas e geridas por comunidades que não somente conservam a biodiversidade, mas também criam valor a partir dela com a produção de alimentos e óleos vegetais, usando os recursos da biodiversidade e tecnologias sociais, locais e modelos de gestão territorial que mantêm os ecossistemas vivos”, detalha o ecólogo.
“Existem estudos e pesquisas que demonstram que essas áreas, especialmente as terras indígenas, apresentam os menores índices de desmatamento e destruição das florestas da Amazônia”, sublinha. “Entendemos a Amazônia como um território de conhecimentos, práticas e tecnologias sociais presentes em todas as dimensões da nossa experiência econômica e cultural”, coincide Úrsula Vidal, Secretária de Cultura do Estado do Pará (Brasil), onde se celebrará a Cúpula do Clima (COP30) a partir de 10 de novembro. “Nosso modo de vida está integrado nos ecossistemas produtivos e na proteção do patrimônio”, explica Vidal. “Somos amazônidas porque recordamos de onde viemos e o que nos constitui como sociedade amazônica. E a agenda de sustentabilidade, regeneração e desenvolvimento de soluções baseadas na natureza para a crise climática está intrinsecamente ligada a soluções baseadas na cultura, nosso modo de vida, especialmente o dos povos e comunidades tradicionais”, conclui. Não em vão, o Brasil é o impulsionador junto com os Emirados Árabes Unidos do Grupo de Amigos para a Ação Climática Baseada na Cultura, que tem como objetivo alcançar uma mudança de paradigma na forma como se entende a mudança climática: não apenas como desafio ambiental, financeiro e científico, mas também cultural. Nesse grupo e convencida da necessidade de unir esses dois campos, a Secretaria-Geral Ibero-Americana se aderirá formalmente na próxima Ministerial de Cultura.
Olhando para esse evento, Lola García-Alix, que leva 35 anos defendendo os direitos humanos, sociais, culturais e econômicos, e lutando pelo reconhecimento dos povos originários, com o Grupo Internacional de Trabalho pelos Direitos Indígenas (IWGIA, em sua sigla em inglês), defende que “o conhecimento dos povos indígenas é empírico, baseado na realidade em que vivem e isso pode dar uma contribuição enorme para os acordos globais”. “A contribuição dos povos indígenas se reconhece no fato de que habitam as zonas de biodiversidade mais alta do mundo. Isso é um indicador de manejo da biodiversidade melhor que em outros lugares”, sentencia García-Alix.
“O problema atual é que a maioria dos países da América Latina e do mundo dependem do acesso aos recursos, aos minerais, à energia verde… E isso está tendo um impacto negativo nos povos indígenas, porque é um modelo extrativista”, explica. “Para os povos indígenas, quando falamos da proteção do patrimônio cultural, não falamos de um ente à parte, falamos de um patrimônio natural. É o território que habitam”, recorda García-Alix. A luta por sua cultura é uma luta pela sobrevivência em territórios depredados, queimados ou contaminados: “A maior parte dos ativistas ambientais assassinados são ativistas indígenas ou líderes indígenas. Essa é a realidade hoje”, lamenta a coordenadora de programas do IWGIA.
Por isso, desde a Secretaria de Cultura do Estado do Pará, Vidal aposta por uma promoção cultural com uma dinâmica baseada na “escuta social”. O Conselho Estadual de Cultura desempenha um papel decisivo nesse desenho, explica: “garantindo modelos de editais públicos, publicando estudos e elaborando cadernos de orientação que garantem a valorização de práticas, projetos e ações vinculadas à salvaguarda do nosso patrimônio imaterial e simbólico, estreitamente vinculado aos territórios de conhecimento dos povos e comunidades tradicionais”.“‘A Amazônia é uma herança’, essa frase para mim é poesia”, confessa Villas-Bôas, que a escutou da boca do arqueólogo paulista Eduardo Neves. Neves defende que o futuro da Amazônia passa por seu passado e desmente com suas pesquisas a imagem eurocêntrica dos cientistas do século XVIII que ignoraram a evidência de sociedades complexas que habitavam a Amazônia. Seus estudos demonstram que a floresta não é um espaço vazio, mas sim um território densamente ocupado e moldado por diversas culturas.
“Muito antes da chegada dos europeus, os povos amazônicos viviam em densas redes de aldeias, praticavam a agricultura, manejavam recursos e isso resultou na biodiversidade que existe hoje”, explica Villas-Bôas. “Por isso a Amazônia é uma herança arqueológica, como as pirâmides maias, incas ou egípcias, só que em vez de ser de pedra é um sistema florestal que os povos originários deixaram para a América do Sul. Um monumento que é a própria Amazônia”, sublinha o ecólogo.
O especialista fala, sem nomeá-lo, desse Patrimônio Imaterial que a UNESCO protege. Esse bem cultural do qual os povos originários foram guardiões durante gerações. “O artesanato, as fibras ou os materiais usados para a construção de casas são também parte desse uso, integrado em sua cultura histórica, que fazem os povos originários da biodiversidade”, admite Villas-Bôas, “mas os alimentos são os principais”, em sua opinião, por “sua capacidade afetiva e emocional de conectar as pessoas com a biodiversidade e com a natureza”.
Sustentabilidade e motor econômico
Na conservação dessas outras práticas culturais que contribuem para a sustentabilidade ambiental, especializaram-se do outro lado da fronteira brasileira, em Santa Cruz, Bolívia, as mulheres do projeto ArteCampo. A organização trabalha com 14 associações locais de artesãs, compostas em sua maioria por mulheres de povos originários, nos territórios de Santa Cruz, Chuquisaca e Tarija, entre outros. No total são mais de 700 mulheres que trabalham a partir de suas comunidades e contribuem para sua sustentabilidade. O projeto se iniciou em 1980, quando Ada Sotomayor Vaca fundou o Centro de Pesquisa de Design Artesanal e Cooperativa (Cidac) como uma instituição de desenvolvimento social sem fins lucrativos, com a intenção de recuperar, valorizar e favorecer o progresso da arte popular e originária de comunidades camponesas. Sua intenção era também alcançar, através de seu trabalho, a melhoria da qualidade de vida. O resultado tem sido um impacto na economia local e nos territórios, além do empoderamento das mulheres da região. À frente desde 2021 está Paula Saldaña Fernández, arquiteta e diretora executiva, que desde sua nomeação tem liderado projetos que promovem a recuperação, preservação e desenvolvimento das artes populares e indígenas das terras baixas bolivianas. “O que nos distingue como ArteCampo é que não trouxemos o artesanato para a cidade; levamos o mercado para as comunidades”, assinala Saldaña. “O artesanato permite que as mulheres fiquem em sua comunidade, cuidem de seus filhos e mantenham vivos seus conhecimentos. Por trás de cada tecido, cada cerâmica, cada bordado, há memória, identidade e território”. Algo que se percebe nos distintos artesanatos que se vendem no ArteCampo, sempre identificados com o território original ao qual pertencem e o nome da artesã.
“As mulheres demonstraram que o artesanato não é só adorno. É alimento, é saúde, é educação, porque com o que vendem sustentam a vida cotidiana”, explica a arquiteta. Tem na cabeça e menciona constantemente Maria Jesús Velarde, de Ichilo, presidenta do ArteCampo, cujo território considera um exemplo de como estão contribuindo para a sustentabilidade.
Maria Jesús envia uma mensagem de whatsapp em que sua voz soa doce e firme. Fala da “palmicha” (palmateira-do-Panamá), a jipijapa, com a qual as mulheres de sua comunidade, a Associação de Tecelãs de Palma de Jipijapa de Buena Vista, conseguiram não somente melhorar sua economia, mas contribuir para a recuperação ambiental de seu território. “ArteCampo trabalha com diferentes associações que cuidam do meio ambiente, mas todas enfrentamos o mesmo problema”, aponta Maria Jesús: “estão se perdendo as matérias-primas próprias das comunidades”. A palmita é uma planta silvestre, “e cada vez está mais escassa porque as pessoas derrubam e queimam o mato”, lamenta Velarde. Economizando parte dos ingressos individuais em um fundo comum, as mulheres conseguiram comprar um terreno e cultivar a jipijapa. Começaram com mil e neste setembro vão plantar mais mil.
“O território não se conserva só com leis, se conserva com cultura, com práticas vivas que mantêm o vínculo com a natureza”, argumenta Saldaña. “Sem cultura não há biodiversidade, porque são as práticas culturais que permitem que os ecossistemas sigam vivos”, explica a arquiteta. E dá um exemplo: “Quando uma menina aprende a bordar com sua mãe ou sua avó, não está apenas aprendendo uma técnica, está herdando um modo de ver o mundo”. O artesanato é também uma forma de resistência: permite que os jovens fiquem em suas comunidades e não migrem”.
Algo com o que concorda muito Lola García-Alix: “Ao discurso sobre a contribuição dos povos indígenas, que sem dúvida é importante, às vezes falta a perna dos direitos. E sem a perna dos direitos ele fica absolutamente debilitado. Você não pode separar os direitos econômicos, sociais e culturais dos direitos civis e políticos”.