A confluência de crise econômicas, sociais, ambientais se vê agravada por um desafio ainda mais profundo e estrutural: a crise de confiança da cidadania para com as instituições governamentais, e para com os distintos estamentos de poder: partidos políticos, sistemas judiciais, parlamentos, instituições religiosas, organizações empresariais e meios de comunicação, entre outros. Ante uma crescente desconexão que vinha se gestando desde antes da pandemia, é importante recuperar a sintonia da cidadania com as instituições.
Para isso, resulta necessário reconectar essas instituições com as preocupações, problemas e necessidades da cidadania. Dado que são as administrações públicas as que têm a responsabilidade, estrutura e capacidade para acometer as transformações sociais, ambientais, digitais, e, além disso, têm em suas mãos o desafio de se transformar desde dentro para acelerar a mudança de suas sociedades, explica Pablo Pascale, responsável de Inovação Pública e Cidadã da Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB).
Em um mundo em rápida transformação, “as instituições públicas não podem estar de costas à inovação; devem liderá-la, sincronizar seus avanços com a sociedade e suas necessidades. Necessitamos instalar uma cultura da inovação nas administrações públicas”, opina Pascale.
“Necessitamos instalar uma cultura da inovação nas administrações públicas na Ibero-América”
Para consegui-lo, a Secretaria-Geral Ibero-americana culminou a primeira fase da Agenda Ibero-americana de Inovação Pública (AIP), um roteiro para que a inovação se materialize em soluções com impacto. Trata-se de fomentar a colaboração e articulação entre diferentes atores e que esses modelos sejam replicáveis e tenham efeitos positivos no ambiental, econômico e social, explicam desde a área de Inovação Pública da SEGIB.
A Agenda da Inovação Pública recebeu apoio, ao mais alto nível político, na recente Cúpula Ibero-americana de Santo Domingo, celebrada a finais de março de 2023. Neste encontro, os mandatários da região elogiaram a contribuição desta agenda, articulada pela SEGIB, e cujas recomendações são resumidas no documento intitulado “As cinco prioridades da inovação pública”.
Cinco prioridades da inovação pública
“A inovação pública se refere à aplicação de técnicas e ferramentas inovadoras no âmbito do setor público para melhorar a eficiência, a eficácia e a qualidade dos serviços públicos que são prestados à cidadania”, explica o documento que resume a primeira fase de implementação desta agenda regional que promove uma cultura da transformação e a melhora contínua das administrações públicas.
Representantes de instituições governamentais identificaram cinco grandes desafios crucial nos quais trabalhar para implementar a inovação pública na região:
→ Articular uma maior colaboração entre áreas e instituições.
→ Promover a abertura à mudança.
→ Alcançar o apoio dos/das servidores/as públicos/as.
→ Impulsionar a experimentação.
→ Reprojetar os procedimentos burocráticos.
1. Colaboração entre áreas e instituições
A dificuldade de articulação entre áreas dentro de uma instituição e/ou entre administrações se expressa em uma forma de trabalho compartimentada “em silos”, na qual não existe uma cultura de compartilhar informação, conhecimentos ou trabalhar em equipes. Também se tem a competência entre áreas ou instituições, o que por sua vez afeta o uso eficiente dos recursos e a geração de resultados.
Apesar desta realidade, existem boas práticas e diferentes iniciativas na região que podem inspirar soluções a este obstáculo. Por exemplo, a Rede de Inovadores públicos do Chile, com mais de 26.000, é um movimento de servidoras e servidores públicos e outros atores sociais que trabalham em rede para melhorar os serviços do Estado chileno.
Articular o trabalho das instituições para a geração de valor público através da inovação é uma das áreas de ação da Agenda de Inovação Pública
Também na Costa Rica está sendo implementada uma “Agenda de Coordenação Interinstitucional para a Justiça Aberta”, uma experiência pioneira a nível nacional e internacional que supõe aproximar a aplicação do Governo aberto dentro da organização e funcionamento do poder judicial.
A partir do sucesso destas e outras boas práticas vigentes, a AIP propõe a implementação de um repositório de capacidades para a transformação pública denominado “Inova Match”, uma plataforma de intercâmbio onde os servidores públicos compartilham sua formação profissional e suas capacidades em base a problemas que afetam a cidadania—e aqui está a chave— e não a problemas internos da instituição.
2. Promover a abertura à mudança
A experiência demonstra que as instituições públicas têm maiores resistências e obstáculos para incorporar mudanças do que organizações de outros setores. E dado que o processo de inovação implica que as transformações institucionais sejam implementadas por pessoas, é a partir delas que pode se promover a abertura à mudança, explica a análise.
Perante esta realidade, como podemos diminuir este grau de resistência à mudança dos/das servidores/as públicos/ as para alcançar processos mantidos de inovação em organizações burocráticas e rígidas?
A proposta de solução para este desafio chama a implementar um espaço de reflexão e participação nas organizações para que os servidores públicos possam questionar determinadas formas de fazer e propor melhoras na instituição. Por que sempre o fizemos assim? Como fazê-lo melhor? São as duas perguntas de partida para que o funcionariado identifique as necessidades de mudança e proponham soluções.
3. Motivar servidores/as públicos/as
Amiúde as instituições públicas são acusadas de ter uma “cultura de conformismo”, mas a realidade é que também há muitas pessoas que têm iniciativas propositivas e inovadoras e muitas vezes não encontram motivação ou espaços para realizá-las. Como motivar servidores/as públicos/as para uma maior eficiência/eficácia, ante a falta de incentivos e reconhecimentos, pelo excesso de medos e penalidades?
Algumas boas práticas neste âmbito se encontram em iniciativas como a plataforma “Líderes que transformam”, implementada no Brasil pela Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). Este projeto ajuda a profissionalizar a seleção das pessoas em postos de livre nomeação, a partir da pré-seleção por competências, tal como explicam os funcionários da entidade neste vídeo:
4. Impulsionar a experimentação
A inovação não segue um processo lineal no qual os resultados são conhecidos de antemão, senão que é um processo que implica exploração e descobrimento à medida que se busca encontrar soluções mediante ensaio e erro. Portanto, para inovar nas instituições públicas, é fundamental estabelecer mecanismos para promover a experimentação e o erro como parte do processo.
Uma das propostas da Agenda de Inovação pública neste âmbito é um programa que aponte ao conceito “erro como oportunidade”, através de uma plataforma web de conhecimento cidadão onde possam ser compartilhadas soluções e experiência em chave de casos de estudo para encontrar erros e soluções comuns. Com ela se incentiva os servidores públicos a apanhar o erro e apresentar projetos de experimentação, que depois são avaliados e premiados
5. Agilizar procedimentos burocráticos
Mais de uma vez se disse que o âmbito governamental é sinônimo de burocracia, ineficiência e lentidão na entrega de serviços à cidadania. Por isso, resulta crucial inovar nos procedimentos públicos para fazê-los mais ágeis.
Nesse sentido, é fundamental manter o foco no cumprimento das normas e em melhorar os objetivos e os resultados. Portanto, o desafio para reduzir a burocracia está em inserir a inovação desde a etapa de formulação e projeto dos processos.
Na Ibero-América existem experiências de sucesso, que podem oferecer chaves úteis. Por exemplo, o Instituto Nacional de Defesa da Competência do Peru conseguiu eliminar 3.778 barreiras burocráticas ilegais ou irracionais que afetavam principalmente às atividades de construção, telecomunicações, transporte, atividades comerciais e educação. Com a eliminação destas barreiras burocráticas em 49 entidades, foi alcançada uma economia estimada de 7 milhões de sóis (2 milhões de dólares).
A inovação pode agilizar os tempos de resposta e a qualidade dos processos públicos começando pela etapa de formulação
Com base em experiências e boas práticas em governos locais e nacionais no Peru, Brasil, Chile, Colômbia, Portugal ou Espanha, se propõe a criação de InnovIA, uma plataforma interativa com inteligência artificial (IA) baseada em questionários de autoavaliação. Através das novas tecnologias, podem ser projetados procedimentos mais ágeis e adaptáveis, baseados em boas práticas prévias e com o valor agregado da participação cidadã.
Um futuro que já chegou
A primeira etapa desta agenda que foi presentada e validada na XXVIII Cúpula Ibero-americana é o resultado de um trabalho colaborativo com 72 instituições governamentais de 16 países, especialistas em inovação, organismos internacionais, e servidores/as públicos.
Ainda assim, a AIP não só foi alcançada a partir da articulação no interno dos países ibero-americanos, senão que encontra ainda mais valor agregado na cooperação entre os países ibero-americanos que geraram soluções conjuntas a desafios comuns, explica Pascale, que liderou este desenvolvimento junto a um grupo de trabalho interdisciplinar.
Segundo o responsável de inovação pública da SEGIB, Pablo Pascale, após concluir a primeira fase da Agenda de Inovação Pública, a visão é impulsionar a implementação de soluções de inovação pública ao longo e largo da Ibero-América e consolidar um ecossistema inovador com a participação e o protagonismo de servidores/as públicos, com o aporte de especialistas, organismos internacionais e da própria cidadania.