Dialogar com uma das maiores especialistas em inteligência artificial e big data da Espanha é abrir a porta a um futuro tecnológico que avança a um ritmo frenético e que apresenta, ao mesmo tempo, um sem-fim de possibilidades e dúvidas. É ético que um algoritmo decida se fica aprovado um crédito bancário ou um seguro de vida? Que consequências pode acarretar uma neurotecnologia na qual podemos cheirar, saborear ou ter experiências sensoriais digitais que nos incitem a comprar determinado produto ou serviço? Que sorte correrão aqueles que não tiverem nem a conectividade nem as competências em uma sociedade com semelhante velocidade de transformação?
Carme Artigas Brugal (Barcelona, 1968) cumpre três anos frente à Secretaria de Estado de Digitalização e Inteligência Artificial (SEDIA) do Ministério de Assuntos Econômicos e Transformação Digital da Espanha, ao qual chegou depois de uma exitosa carreira na inovação e no empreendimento tecnológico.
Esta engenheira química com experiência em capital de risco de empresas tecnológicas se declara “apaixonada da tecnologia”, algo que não a impede de assegurar com contundência que “a digitalização não pode ser feita a qualquer preço, implicar perda de direitos ou aprofundar a desigualdade.”
Durante uma entrevista com o Portal Somos Ibero-América, Artigas defende um “humanismo tecnológico”, na conta regressiva para a XXVIII Cúpula Ibero-americana onde, a finais de março, será apresentada uma Carta Ibero-americana de Princípios e Direitos Digitais, um acordo de objetivos comuns para proteger os direitos humanos no entorno digital e legislar sobre novos direitos vinculados a tecnologias disruptivas.
Digitalização humanista
“Uma digitalização humanista representa colocar o ser humano no centro da transformação digital. Não se trata de que as pessoas estejam ao serviço da tecnologia, senão ao contrário”, assegura Artigas com o convencimento de encontrarmo-nos em um momento tão decisivo como urgente.
Temos, explica, desafios que são duas caras da mesma moeda e que se não os resolvemos agora os danos serão irreversíveis. Um é a transição ecológica e outro são os dilemas éticos que acarreta o desenvolvimento tecnológico, assuntos que estão vinculados entre si e que definirão o legado da nossa geração para o futuro.
Neste segundo aspecto, a Secretária de Estado assegura que a Ibero-América está perante a “oportunidade histórica” de se colocar à vanguarda de um “desenvolvimento tecnológico ético”. Neste sentido, valoriza umas circunstâncias chave como a Presidência espanhola da União Europeia no segundo semestre de 2023, a Cúpula Ibero-americana a finais de março e o peso de uma população de mais de 650 milhões de pessoas que falam espanhol e português.
“Temos a possibilidade de ser protagonistas de um humanismo tecnológico no qual a Europa e a América Latina se comprometam na defesa dos direitos digitais”, sublinha.
Una “carta de navegación”
A Carta Ibero-americana de Princípios e Direitos Digitais que será apresentada na XXVIII Cúpula a se celebrar na República Dominicana no próximo 24 de março suporia uma “carta de navegação” com objetivos comuns que orientarão o desenvolvimento legislativo e a regulação posterior naqueles países ibero-americanos que a subscreverem.
A Carta Ibero-americana de Direitos Digitais estabelecerá objetivos comuns que orientarão um desenvolvimento legislativo posterior nos países que a subscreverem
Como antecedentes desta proposta existe a Carta de Direitos Digitais da Espanha, aprovada em julho de 2021. Tal documento consigna temas como proteção da identidade, proteção de dados, direito à igualdade, direitos laborais, liberdade de informação, assim como direitos vinculados a novos desenvolvimentos como a inteligência artificial ou neurotecnologia.
Também a Comissão Europeia apresentou em janeiro de 2022 uma “Declaração de Princípios e Direitos Digitais” . Por sua parte, o Peru submeteu a consulta pública a sua própria carta de direitos digitais e o Chile se converteu no primeiro país do mundo em legislar sobre os neuro direitos em setembro de 2021.
À luz do crescente interesse do tema a nível regional, a responsável de digitalização da Espanha opina que o primeiro passo para desenvolver os direitos digitais é transladar ao entorno virtual os direitos que já temos no mundo analógico.
“Garantir os direitos básicos é fundamental e isto se alcança com regulação”, mas neste campo há de se ir mais além e pensar naqueles direitos derivados do uso de tecnologias emergentes, como a inteligência artificial ou as neurotecnologias. Porque, no caso de não o fazer, as consequências podem ser irreversíveis dado seu possível impacto sobre as pessoas, as empresas e a sociedade em seu conjunto, opina.
Para alguém como a Secretária de Estado, com uma sólida trajetória de empreendimento no setor privado, falar de regulação obriga a matizar: “Tem de ser uma regulação inteligente, que não mate a inovação”. Não se trata de regular tudo, especifica, senão os usos de risco em determinadas aplicações, entendendo que a tecnologia não é boa nem má, senão que depende de para que seja utilizada.
Antes de legislar, há de se que ter muito claro que direitos temos de preservar, como vamos supervisionar e de que forma aplicaremos a norma, algo que requer a participação de empresas e P&MES, explica.
Trabalho em conjunto
Tão importante como a perspectiva empresarial é também a de especialistas, agentes sociais e o mundo acadêmico. Com esta ideia, se conformou em outubro de 2022 a Rede Ibero-americana para a Digitalização e a Inteligência Artificial, um espaço para compartilhar experiências e políticas em matéria de IA e digitalização, assim como aprofundar sobre os desafios e oportunidades que traz para a democracia a ambos os lados do Atlântico. “Convidamos entes públicos, universidades, agentes sociais, juristas e empresas de todos os países ibero-americanos a se unirem a esta Rede”, sublinha Artigas.
“Garantir os direitos básicos é fundamental e isto se alcança com regulação, mas deve ser uma regulação inteligente, que não mate a inovação
En esa línea de trabajo por unas tecnologías éticas también se encuentra SpainNeurotech un centro de neurotecnologías que desarrollará herramientas tecnológicas basadas en
Nessa linha de trabalho por umas tecnologias éticas também se encontra o “SpainNeurotech”, um centro de neurotecnologia que desenvolverá ferramentas tecnológicas baseadas nos fundamentos do cérebro humano. Com base em Madri, este centro será um dos cinco no mundo especializados nesta matéria. Nele será alavancada uma pesquisa do cérebro humano, a criação de novos diagnósticos e terapias para enfermidades cerebrais e a criação de um ecossistema de inovação de neurotecnologia na Espanha. Desde o centro também se deseja contribuir a adaptar estas disciplinas aos valores éticos e humanísticos da sociedade e proteger a cidadania do uso de seus dados, pelo quê, o direito à privacidade e a proteção de dados são dois temas sobre os quais a Espanha quer pôr o foco.
“Frente ao modelo estado-unidense no qual os dados são propriedade das empresas ou o modelo chinês no qual os dados são dos Estados, nós defendemos que os dados devem estar mais perto da cidadania”.
Direito à inclusão digital
Ao outro extremo das tecnologias digitais mais vanguardistas se encontram aqueles que não têm sequer uma conexão básica à Internet, aqueles coletivos que, por idade, sexo, localização geográfica ou deficiência, não acedem ao progresso tecnológico e/ou não contam com as habilidades digitais mínimas para sobreviver em uma sociedade cada vez mais tecnológica.
Perante esta realidade, a inclusão digital (conectividade e as competências digitais) é considerada como um direito fundamental em um mundo cada vez mais conectado e assim fica refletido na Carta Ibero-americana de Direitos Digitais.
A tecnologia deve ser entendida como uma oportunidade de vertebração social e um dique de contenção da desigualdade
“Os governos devemos velar para que não haja ganhadores e perdedores da digitalização (…) A tecnologia deve ser entendida como uma oportunidade de vertebração social e um dique de contenção da desigualdade”, defende a Secretária de Estado de Digitalização.
Tecnologia e cidadania
Se a Carta de Princípios e Direitos Digitais é um ponto de partida para desenvolvimentos legislativos posteriores, como traduzi-la em um exercício efetivo de direitos? Em uma aproximação ao “dia seguinte” da aprovação da Carta, a Secretária de Digitalização da Espanha, avança a ideia de uma grande campanha para somar não só mais governos, senão também os agentes sociais, organismos internacionais, ONGs e empresas.
Mais além das regulações que forem aprovadas por cada país, a adesão à Carta implicaria, por um lado, um compromisso ético das empresas ante determinados princípios éticos e por outro, uma maior consciência cidadã para conhecer e exigir seus direitos digitais. Isto pode gerar, a juízo de Artigas, um elemento reputacional e de visibilidade corporativa e um grande movimento cívico que propulsione mudanças. “Não menosprezemos o poder da cidadania. Às vezes o que não se obtém por regulação, se consegue por reputação”.
Como fechamento da entrevista sobre um futuro que se conjuga já em presente, a Secretária de Estado de Digitalização e Inteligência Artificial da Espanha, assegura que a XXVIII Cúpula Ibero-americana pode significar um antes e um depois na defesa dos direitos digitais. “Agora é o momento de colocar a digitalização ao serviço das pessoas”, conclui.