O que sucederia se a Internet se apagasse? Não poderíamos nos comunicar, nos informar, trabalhar, comprar, aprender ou simplesmente “funcionar” da forma em que estamos acostumados. Por mais apocalítico que pareça este suposto, é a realidade para 244 milhões de pessoas na América Latina e o Caribe que não têm acesso a serviços de Internet, o que representa que cerca de 32% da população vive a espaldas das novas tecnologias, segundo dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA).
Conforme avança a digitalização e quantos mais benefícios e oportunidades se abrem para aqueles que têm acesso a Internet, mais portas se fecham para aqueles que não o têm. O preço da desconexão digital se paga em forma de restrição de acesso a informação, impossibilidade de realizar trâmites ou formação em linha, assim como limitações para exercer direitos como a saúde, o acesso à justiça, educação entre outros. Portanto, uma conexão adequada a Internet e a disponibilidade de dispositivos tecnológicos permite exercer cidadania.
Na América Latina, uma das regiões mais desiguais do mundo, a crise COVID mostrou o alto custo da exclusão digital e evidenciou que desigualdade e exclusão digital são dois lados de uma mesma moeda.
“A tecnologia está tão estreitamente entrelaçada com o tecido social que a privação das tecnologias da informação e as telecomunicações está ligada a outras privações como os baixos ingressos, o desemprego, a educação deficiente, o déficit de saúde ou o isolamento social”, explica a Comissão Econômica para América Latina.
Se estima que 244 milhões de pessoas na América Latina e o Caribe não têm acesso adequado a serviços de Internet. Representam 32% da população.
Ao analisar as possibilidades da transformação digital para superar as brechas do desenvolvimento, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também alerta em seus “Perspectivas Econômicas para América Latina” (Latin America Outlook LEO 2020), do risco que as disparidades sociais e econômicas ampliem a brecha entre ganhadores e perdedores da digitalização.
“Em um mundo cada vez mais digital e interconectado, inclusão digital e inclusão social caminham de mãos dadas”, razão pela qual a expansão e ampliação da digitalização a todas as capas sociais é um elemento crucial para melhorar a inclusão social, explica por sua parte, o economista Cipriano Quirós, um dos autores do estudo “Desigualdade Digital na América Latina”, publicado pela Fundação Carolina.
A armadilha das três brechas
Ainda que, coloquialmente, se fale de “brecha digital”, o termo engloba três disparidades que interagem e se retroalimentam. A primeira é a de acesso e qualidade da conexão, a brecha de segundo nível tem a ver com a intensidade no uso das ferramentas online, assim como das habilidades e competências digitais.
A brecha de terceiro nível está vinculada com os resultados, oportunidades, benefícios e direitos digitais aos quais acedem as pessoas a partir de sua conectividade e de suas competências digitais (brecha de aproveitamento).
Aproveitar todas as vantagens da transformação digital e exercer os direitos digitais vai mais além do simples acesso à Internet, requer qualidade e velocidade de conexão, assim como dispositivos que permitam utilizar tecnologias mais sofisticadas com conteúdo multimídia (computadores, tablets, telefones inteligentes).
Os dados mostram que isto é uma matéria pendente na América Latina. Menos de 50% da população latino-americana tem conectividade de banda larga fixa e só 9,9% conta com fibra de alta qualidade em casa. Se bem 87% da população vive dentro do alcance de um sinal de 4G, o uso e a penetração reais continuam sendo baixos, segundo dados do Banco Mundial.
Na América Latina, a brecha de primeiro nível está fortemente vinculada ao nível de ingressos e às diferenças entre zonas urbanas e rurais, um reflexo de como a exclusão social e a exclusão digital interagem e se retroalimentam.
Menos del 50% de la población latinoamericana tiene conectividad de banda ancha fija y solo el 9,9% cuenta con fibra de alta calidad en el hogar
Por exemplo, os preços dos planos de banda larga móvel e fixa são inassumíveis para as pessoas mais pobres, ao representar entre 12% e 14% de seus ingressos totais. Isto é 6 vezes mais do que o umbral internacional de referência de 2% para qualificar um serviço de Internet como acessível, revela o relatório “Universalizar o acesso às tecnologias digitais”, publicado pela CEPAL em agosto de 2020.
Ainda assim, o custo do telefone inteligente básico mais barato representa entre 4% e 12% do ingresso familiar médio em grande parte da América Latina, chegando a representar 30% nos países latino-americanos de menores ingressos.
Também as diferenças de conectividade entre zonas urbanas e rurais aprofundam a brecha digital na América Latina, onde 67% das residências urbanas conta com conexão à Internet, com respeito a 23% nas zonas rurais. Em países, como Bolívia, El Salvador, Paraguai e Peru, mais de 90% das residências rurais não contam com conexão à Internet. Inclusive em países com melhor nível conectividade como Chile, Costa Rica e Uruguai, quase a metade das residências rurais têm conexão, revela o estudo da CEPAL.
Por outra parte, a CEPAL alerta que “as baixas velocidades de conexão consolidam situações de exclusão ao inabilitar o uso de soluções de teletrabalho e educação online”. A junho de 2020, em plena pandemia de COVID 19, em 44% dos países latino-americanos não se alcançava a velocidade de descarga para desenvolver, simultaneamente, várias atividades online.
Às barreiras de conectividade se soma a brecha de habilidades e competências digitais. A OCDE destaca que, durante a pandemia, menos da metade das pessoas na América Latina tinham suficiente experiência no uso de ferramentas digitais para tarefas profissionais básicas, pelo quê, mais da metade da população ficou excluída de atividades à distância.
O direito à inclusão digital
Os dados demonstram que a inclusão digital é mais do que só o acesso e qualidade de conexão, senão que envolve, além disso, as possibilidades que as pessoas e os países têm de aproveitar as vantagens e oportunidades da transformação digital, algo que, por sua vez, habilita o exercício de direitos no entorno digital, explica Alejandro Kawabata, diretor de Assuntos Jurídicos e Institucionais da Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB).
Portanto, a inclusão digital não só abre a porta ao exercício de direitos, senão que é também um direito em si mesma. Neste contexto, a Carta Ibero-americana de Princípios e Direitos Digitais, que será apresentada na XXVII Cúpula Ibero-americana, põe em manifesto que “a transformação digital deve colocar as pessoas no centro, não deve deixar ninguém para trás nem criar novas brechas”.
A Cúpula Ibero-americana promoverá um compromisso dos países ibero-americanos para impulsionar políticas inclusivas que atendam a situações de vulnerabilidade de distintos coletivos e grupos sociais no entorno digital, partindo da relação entre inclusão digital e inclusão social.
A XXVII Cúpula Ibero-americana proporá uma Carta de Princípios e Direitos Digitais que estabelece que a transformação digital não deve deixar ninguém para trás nem aprofundar as brechas de exclusão digital.
Perante tamanho desafio, o que falta para uma digitalização que seja verdadeiramente inclusiva? O Relatório Global de Conectividade 2022 oferece cinco chaves: investimento em infraestruturas digitais, acessibilidade, competências digitais, dispositivos acessíveis e segurança online.
O estudo Desigualdade Digital na Ibero-América publicado pela Fundação Carolina, destaca que “as medidas de política pública para a inclusão digital devem ser acompanhadas de ações para afiançar as competências digitais, já que estas permitirão passar de uma sociedade da informação a uma sociedade do conhecimento”.
O Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), a CEPAL e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) coincidem em que aproveitar o imenso potencial da transformação digital requererá um esforço concertado, cooperação regional e alianças público-privadas para ampliar uma conectividade universal, realizar investimentos necessários em infraestrutura e melhorar a capacitação em competências digitais.