Em uma sociedade digital onde os algoritmos, a inteligência artificial e a realidade virtual, cada vez mais, ganham protagonismo, como garantir o pleno exercício de direitos e responsabilidades? Como apagar a linha que separa ganhadores e perdedores desta digitalização imparável? Como frear a exclusão digital daqueles que não têm nem a conectividade nem os conhecimentos para aproveitar os benefícios deste presente e futuro tecnológico?
Ante uma transformação digital que avança mais rápido do que a regulação, a Ibero-América impulsiona um acordo princípios e objetivos comuns para uma digitalização inclusiva, justa e centrada nas pessoas. A Carta Ibero-americana de Princípios e Direitos Digitais, que será apresentada na XXVIII Cúpula de Chefes de Estado e de Governo, propõe padrões comuns para aplicar ao entorno digital os direitos humanos já reconhecidos no mundo presencial, assim como elaborar novos direitos para responder aos desafios que as tecnologias disruptivas apresentam, como a inteligência artificial ou as neurotecnologias.
Ainda que esta Carta não seja vinculante nem afete a aplicação de leis nacionais, sim propõe um ponto de partida e um marco de referência para desenvolver leis e/ou políticas públicas nos países que a subscreverem, assim como princípios atualizados que as empresas e a sociedade civil possam aplicar no momento de desenvolver e utilizar novas tecnologias.
“A adoção desta Carta converteria a Ibero-América em uma das primeiras regiões do mundo em contar com padrões comuns para colocar a pessoa no centro das políticas públicas digitais e garantir seus direitos”, explica o Secretário-Geral Ibero-americano, Andrés Allamand, que fez da digitalização para um desenvolvimento justo e inclusivo um dos princípios guias de sua gestão.
A Ibero-América poderia se converter em uma das primeiras regiões do mundo em contar com padrões comuns para uma digitalização centrada nas pessoas
Representantes dos países ibero-americanos trabalharam e afinaram a Carta Ibero-americana de Direitos Digitais a partir de uma proposta da Espanha, cuja Secretária de Estado de Digitalização, Carme Artigas assegurava em entrevista com o Portal Somos Ibero-América que “nos encontramos perante a oportunidade histórica de protagonizar um desenvolvimento tecnológico ético e comprometido com os direitos humanos”.
Direito à inclusão digital
Para uma região como a América Latina, onde mais de 244 milhões de pessoas— 32% da população—não têm acesso adequado à conectividade, a inclusão digital é um tema ineludível para garantir que a transformação tecnológica não gere novas brechas nem aprofunde as já existentes.
Neste sentido, explica Alejandro Kawabata, diretor de Assuntos Jurídicos e Institucionais da Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB), a inclusão digital é mais do que somente o acesso e a qualidade de conexão, senão que envolve também as possibilidades das pessoas e dos países de aproveitar as vantagens e oportunidades da transformação digital, algo que por sua vez, habilita o exercício dos direitos no entorno digital.
Portanto, também a inclusão digital é considerada um direito em si mesma, ao possibilitar formas de exercer direitos básicos como a educação, a saúde, o acesso à justiça ou a informação. Por isso, a Carta Ibero-americana de Princípios e Direitos Digitais, convida a adotar políticas públicas inclusivas que atendam a situações de vulnerabilidade de distintos coletivos e grupos sociais, partindo da relação entre inclusão digital e inclusão social.
Em uma região como a América Latina, onde 244 milhões de pessoas (32% da população) carece de conectividade adequada, a inclusão digital é um direito
Neste sentido, os países que subscrevam este roteiro regional se comprometem para que a digitalização alavanque o acesso à educação, à cultura e à saúde, assim como o impulsionamento de políticas públicas que promovam um meio digital saudável que proteja os mais vulneráveis, especialmente a infância, de “entornos digitais abusivos e aditivos”, algo que celebram desde a UNICEF ao considerá-lo “um passo na direção correta para fazer realidade um mundo melhor para a infância”.
O documento que será assinado pelos países ibero-americanos na próxima Cúpula também especifica que a falta de meios, habilidades ou competências digitais não pode representar uma discriminação para aqueles que não podem ou não estão em disposição de se integrar no processo de transformação digital.
Proteção de dados e cibersegurança
Uma digitalização centrada nas pessoas passa também por um entorno digital seguro, onde a privacidade e a proteção dos dados pessoais seja respeitada, tanto na relação com o Estado como no exercício de atividades profissionais, lúdicas ou sociais. Os países ibero-americanos se comprometem a ampliar a cooperação regional nesta área, assim como avançar na interoperabilidade dos dados.
No que diz respeito à cibersegurança, serão impulsionadas normas políticas e ações educativas que convertam a cibersegurança e a luta contra o cibercrime em uma causa comum.
Participação e administração eletrônica
Reconhecendo que o entorno digital também pode ser terreno fértil para a desinformação, a polarização e ações que afetem a convivência social, os Estados que subscrevam a Carta também se comprometem a garantir o direito das pessoas a receber livremente informação veraz, ter proteção legal contra a desinformação e consolidar a liberdade de expressão nestes novos meios.
O acesso telemático aos serviços públicos deve ser inclusivo, acessível e seguro
Ainda assim, no que diz respeito às administrações públicas, entende-se que a transformação digital deve servir para aproximar os serviços do Estado à cidadania, pelo quê, é estabelecido que o acesso telemático aos serviços públicos seja inclusivo, acessível e seguro, que garanta o anonimato dos dados e que as pessoas não tenham de apresentar, reiteradamente, documentos que já estejam em poder da Administração e que foram subministrados telematicamente.
Tecnologias emergentes
Perante os riscos potenciais de uma má aplicação de tecnologias disruptivas como a inteligência artificial, o metaverso ou as neurotecnologias, a Carta de Princípios e Direitos Digitais propõe uma abordagem humanista destes desenvolvimentos tecnológicos emergentes, em sintonia com a Recomendação sobre a Ética da Inteligência Artificial que foi assinada em novembro de 2021 pelos 193 estados membros da UNESCO.
No plano ibero-americano, a Carta que será apresentada na próxima Cúpula de Chefes de Estado, representa o compromisso de abordar coletivamente os desafios que tecnologias em ascenso como o metaverso ou as neurotecnologias supõem para a integridade da pessoa. Neste sentido, será impulsionado um trabalho conjunto a nível ibero-americano para o reconhecimento e diálogo sobre novos direitos associados à Inteligência Artificial e aos algoritmos de decisão automatizada.
Sobre o particular, a Secretária de Estado de Digitalização e Inteligência Artificial da Espanha, Carme Artigas, valoriza que a Carta Ibero-americana reflita a proteção dos direitos derivados do uso destas tecnologias emergentes, cujo mal uso pode ter “consequências irreversíveis”, destaca.
Os países ibero-americanos realizarão uma abordagem coletiva dos desafios de tecnologias em ascenso como o metaverso ou as neurotecnologias.
Artigas é partidária de “uma regulação inteligente, que não mate a inovação” e explica que “não se trata de regular tudo, senão aqueles usos que podem representar riscos para as pessoas, as empresas e a sociedade em seu conjunto.”
Como exemplo disso, a nível de região, temos o Chile, que em setembro de 2021 se convertia no primeiro país do mundo em contar com uma lei para regular o uso das neurotecnologias. Ainda assim, reformou a sua Constituição para estabelecer “um desenvolvimento científico e tecnológico ao serviço das pessoas” e é consagrada, a nível supralegal, a proteção dos neurodireitos.
Por sua parte, a Carta de Direitos Digitais da Espanha, aprovada em julho de 2021 também desenvolve direitos cidadãos relativos à Inteligência Artificial, como o de não ser objeto de decisões baseadas unicamente em processos automatizados, incluindo processos jurídicos, administrativos ou diagnósticos de saúde. A Carta espanhola proíbe expressamente o uso de sistemas de Inteligência Artificial dirigido a manipular ou perturbar a vontade das pessoas.
Mercados digitais justos, inclusivos e seguros
Os governos ibero-americanos se comprometem também a impulsionar uma digitalização respeitosa dos direitos das pessoas no entorno virtual, tanto em seu papel de consumidores como de trabalhadores. Por isso a Carta recolhe a importância de o processo de digitalização respeitar os direitos laborais contidos nas legislações nacionais, proteger os consumidores de possíveis abusos, promover a livre competência e prever práticas monopólicas.
Ao subscrever a Carta, os governos ibero-americanos reconhecem que a digitalização deve impulsionar um modelo de desenvolvimento sustentável, que promova a desconcentração demográfica e fortaleça o entorno rural. Tudo isso, asseguram, abre oportunidades de gerar mais riqueza, fortalecer os sistemas produtivos e as capacidades regionais compartilhadas, o que, por sua vez, se converte em um elemento a mais de união entre os nossos países.
O potencial da digitalização para o desenvolvimento e para a integração esteve constantemente presente nos debates da Conferência Ibero-americana e se converteu em um tema prioritário após a acelerada transformação digital que a pandemia impulsionou. Já em 2021, na Declaração da Cúpula de Andorra, se advertia sobre a importância de “alcançar uma sociedade digital inclusiva, regulada, segura e transparente para um desenvolvimento sustentável que permita eliminar as brechas digitais entre os países e dentro deles”.
A prioridade que a Secretaria Pro Tempore da República Dominicana outorga ao tema, os desenvolvimentos legislativos sobre digitalização e direitos digitais a ambos os lados do Atlântico, assim como a presidência espanhola da União Europeia no segundo semestre de 2023 impulsionam a vontade política dos governos ibero-americanos para adotar um roteiro comum para uma digitalização humanista, em forma de Carta de Princípios e Direitos Digitais.
A XXVIII Cúpula Ibero-americana abre uma janela de oportunidade para fazer da digitalização um veículo de transformação e desenvolvimento.
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