Direitos na arte perante a IA Generativa

Direitos na arte perante a IA Generativa
A creative representation of sustainable development, where the convergence of digital and organic elements highlights the importance of eco-friendly technological progress.

A inteligência artificial generativa redefine o horizonte do possível na criação cultural, mas também coloca em risco princípios fundamentais do direito cultural ibero-americano. Reconhecer esses desafios e enfrentá-los a partir de uma lógica de cooperação regional, inclusão e respeito pela diversidade é fundamental para que a revolução digital não enfraqueça, mas sim fortaleça o tecido cultural da região.

Na primeira semana de abril era improvável acessar às redes sociais e não se deparar com imagens recriadas ao estilo do Studio Ghibli de Hayao Miyazaki. A explosão, fruto do apreço ao trabalho do criador de um imaginário icônico, é também um assalto aos direitos de autor de um artista vivo, além de uma captura massiva de dados e imagens de pessoas para treinar ainda mais a IA.

O debate sobre este passo em falso para a IA  é importante para domar a potência da IA generativa e fazer as perguntas inevitáveis em um mundo onde os algoritmos geram e condicionam imagem, texto e criação musical: De quem ou de quais pessoas são os estilos que a IA gera? Podem ser usados livremente? Existe alguma forma de proteger a criação no ambiente digital? Como gerir e resolver a questão dos direitos autorais e os conflitos por plágios na era da IA?

Esses questionamentos sustentam o fato de estarmos diante de um fenômeno radicalmente novo. A IA generativa transforma de forma acelerada os modos de produção e circulação cultural em todo o mundo. No espaço ibero-americano, o fenômeno levanta perguntas especialmente urgentes sobre o exercício efetivo dos direitos culturais, tratando-se de um contexto plurilíngue e com uma riqueza patrimonial tão exuberante quanto desigual é o seu acesso à tecnologia

Os direitos culturais na Ibero-América: um marco de referência

A Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB) promove historicamente os direitos culturais como uma dimensão essencial dos direitos humanos. Assim o reconhece, desde 2006, a Carta Cultural Ibero-americana aprovada na XVI Cúpula Ibero-americana realizada em Montevidéu: “Toda pessoa tem direito de acessar, participar, criar e desfrutar da vida cultural, de expressar sua identidade e de se beneficiar da diversidade cultural”.


Esse texto é uma ferramenta de cooperação e integração cultural que favorece o desenvolvimento da diversidade interna dos países e que impulsiona novas formas de coordenação, especialmente em assuntos como os direitos autorais, o patrimônio ou as indústrias culturais com uma perspectiva inclusiva.

Um passo mais além, a XXIV Cúpula Ibero-americana de Veracruz impulsionou em 2014 o projeto de uma Agenda Digital Cultural para a Ibero-América. Com una abordagem transversal, fomenta a inserção da cultura ibero-americana nas redes mundiais de informação — com especial atenção aos direitos autorais — e promove a participação nas possibilidades de desenvolvimento que a cultura digital oferece.

A Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB) promove historicamente os direitos culturais como uma dimensão essencial dos direitos humanos

A XXVIII Cúpula de 2023 em Santo Domingo continuou abundando nesse trabalho através da Carta Ibero-americana de Princípios e Direitos nos Entornos Digitais, que registrava o compromisso de trabalhar para “procurar, conforme à normatividade de cada país, os caminhos jurídicos que garantam as formas de expressão, criação artística e empreendedorismo característicos dos ambientes digitais”.

E então ela chegou

“Os direitos culturais abrangem a liberdade de criação e expressão artística, o acesso equitativo aos bens e serviços culturais, ou o direito à diversidade cultural e linguística e à participação na vida cultural comunitária”, indica Alejandro Kawabata, Diretor de Assuntos Jurídicos e Institucionais da SEGIB.

Diante de uma máxima como a anterior, fica claro: a IA generativa tensiona esse conjunto de direitos. Porque, por um lado, abre oportunidades para democratizar a criação e facilitar o acesso a conteúdos culturais mas, ao mesmo tempo, introduz desafios que exigem uma reflexão crítica a partir de uma perspectiva de justiça cultural. 

Um dos pontos mais sensíveis é o uso que os modelos de IA fazem de obras culturais preexistentes para seu treinamento. Ao reproduzir estilos, padrões ou linguagens sem reconhecimento explícito a seus autores, são minados direitos patrimoniais — e também morais — de criadores e comunidades. Algo especialmente abusivo quando se trata de saberes tradicionais ou expressões culturais comunitárias fora da proteção dos marcos legais convencionais.

Para além do poder com que essas tecnologias irromperam, a maioria dos modelos de IA generativa dominantes está treinada sobre grandes quantidades de dados em inglês, o que introduz um viés cultural e linguístico que pode invisibilizar ou marginalizar expressões culturais em espanhol, português e línguas indígenas. Ou seja, hoje a prevalência do inglês representa uma ameaça direta à pluralidade cultural no entorno digital e ao direito dos povos ibero-americanos a se expressarem em seus próprias línguas e a acessar a conteúdos que reflitam sua identidade.

Além disso, a infraestrutura tecnológica, o capital humano e os recursos necessários para desenvolver modelos próprios de IA não estão distribuídos de forma equitativa na região. Isso gera uma desigualdade digital que também se traduz em uma desigualdade cultural, onde as narrativas geradas por sistemas automatizados não representam, necessariamente, a complexidade e diversidade da Ibero-América. 

Cultura gerada versus cultura vivida

A automatização da criação cultural coloca uma tensão entre o “culturalmente gerado” e o “culturalmente vivido”. A IA pode imitar formas culturais, mas carece de contexto, memória e comunidade, e existe o risco de trivializar expressões simbólicas profundas ao produzir versões descontextualizadas ou padronizadas por meio da IA. O filósofo e editor argentino Octavio Kulesz, assinala que, além disso, “a possibilidade de criar produtos culturais altamente personalizados através da IA generativa, atomiza e isola a cultura, mais do que a integra”. 

Kulesz faz parte da representação ibero-americana dos 24 especialistas mundiais designados pela UNESCO para elaborar as recomendações de um uso ético da IA junto ao brasileiro Edson Prestes e Silva Junior, a mexicana Constanza Gómez Mont e Carolina Inés Aguerre Regusci, do Uruguai.

A IA abre oportunidades para democratizar a criação e facilitar o acesso a conteúdos culturais, ao mesmo tempo que introduz desafios que requerem uma reflexão crítica

Diante da possibilidade de que as máquinas possam vir a gerar expressões que se integrem aos acervos e referências culturais comuns, a linguista computacional Carmen Torrijos afirma que “a IA não é mais criativa do que os seres humanos”, mas tem certeza de que pode amplificar nossas capacidades associativas e artísticas: “O criativo não é um porto, mas uma navegação entre infinitos elementos culturais que os modelos de linguagem nos permitem combinar e recombinar.”

Desses prós e contras, deduz-se que a IA generativa abre oportunidades para democratizar a criação e facilitar o acesso a conteúdos culturais, ao mesmo tempo que introduz desafios que exigem uma reflexão crítica a partir de uma perspectiva de justiça cultural. Surgem questões importantes a serem respondidas, como: De quem ou de quais pessoas são os estilos que a IA gera? Podem ser usados livremente? Existe alguma forma de proteger a criação no ambiente digital? Como gerir e resolver a questão dos direitos autorais e os conflitos por plágios na era da IA? que introduce desafíos que requieren una reflexión crítica desde una perspectiva de justicia cultural. Surgen importantes cuestiones por responder como: ¿De quién o quiénes son los estilos que genera la IA? ¿Se pueden usar con libertad? ¿Hay forma de proteger la creación en el entorno digital? ¿Cómo gestionar y resolver la cuestión de los derechos de autor y los conflictos por plagios en la era de la IA?

A IA como ferramenta e musa

Em uma região rica em artistas, surgem propostas de criadores novos e consagrados que, a partir da literatura, da música, das artes visuais e da cinematografia, se utilizam da IA generativa para se tornarem “artistas aumentados” ou para refletir sobre o próprio fenômeno que representa o processo de externalizar a criação.

Desde a literatura o poeta digital mexicano Martín Rangel apresenta em seu projeto Sou uma máquina e não posso esquecer um poema-vídeo generativo que simula a voz de um robô-poeta, levantando questões sobre a memória e a autonomia criativa das máquinas.

A inteligência artificial e seu papel transformador como chave temática e como parte do próprio processo de criação é um tema recorrente no trabalho do romancista, ensaísta e crítico literário espanhol  Jorge Carrión, autor de Membrana (2021) e Os campos eletromagnéticos: teorias e práticas da escritura artificial (2023). Para o autor, as IA “já redigem melhor do que 95% da humanidade”, ainda que a literatura —como arte complexa e simbólica— continua estando “ainda longe de ser alcançada plenamente pelas máquinas”.

A produtora e compositora venezuelana Arca – Alejandra Ghersi – também propõe novas formas de colaboração humano-máquina na música pop experimental, integrando a IA generativa em seus projetos. Em 2020, lançou Riquiquí; Bronze Instances (1–100), uma coleção de 100 remixes de seu tema Riquiquí gerados por uma inteligência artificial chamada Bronze​

María Arnal, cantora e compositora espanhola, explora o cruzamento entre arte, tecnologia e inteligência artificial generativa. Em AIRE, um projeto criado junto ao músico John Talabot – estreado no Teatre Lliure de Barcelona e apresentado no festival Sónar+D e na 17 Bienal de Arquitetura de Veneza – escuta-se um coro artificial treinado com mais de 40 horas de sua própria voz. 

A artista visual argentina Sofía Crespo utiliza a tecnologia para emular a biodiversidade gerando flora e fauna invertebrada artificial de aparência orgânica.​

Conhecida pelas séries Neural Zoo (2018-2022) e Artificial Natural History (livro em curso, 2020-2025) combina padrões biológicos com arte digital​ para dar vida a criaturas imaginárias. Em Structures of Being (2023), projetou suas imagens na fachada da Casa Batlló de Barcelona com a intenção de “que as pessoas sintam o assombro que eu senti ao contemplar a obra de Gaudí”, assinala no making off do projeto.

O fotógrafo e artista conceitual catalão Joan Fontcuberta também cria imagens sintéticas mediante IA para nos interrogar sobre a autoria e a credibilidade visual​. Entre seus projetos: La petite mort (2020) e Frenografías (2021), criados em coautoria com a artista e bióloga Pilar Rosado, De rerum natura (2023), Nemotipos (2023-2024) e Freak-Show II (2024), “Uma instalação que tenta esclarecer qual é o conceito de monstruosidade contemporânea”.

Desde a Costa Rica, o cineasta Andrés Bronnimann se situa na vanguarda do cinema experimental com o apoio intensivo de IA generativa. Em 2024 fundou o estúdio Dream Stuff do qual surgem curtas-metragens difundidos on-line criados integralmente mediante IA: desde a animação de imagens até a edição final.

Em suas obras Kingdom, Yuxtaposiciones, Biometría ou Nación a IA é instrumento para o ativismo visual em uma tentativa de demonstrar que com algoritmos é possível produzir narrativas audiovisuais complexas que denunciam problemas reais​.