Um edifício desmorona em uma Buenos Aires coberta de neve tóxica em O eternauta, adaptação da novela gráfica homônima de Héctor Oesterheld protagonizada por Ricardo Darín e que desde abril pode ser vista na Netflix. Transformar a capital argentina em uma cidade pós-apocalíptica implicou, segundo seus criadores, um desafio tecnológico e humano: 35 locações reais e mais de vinte cenários criados especialmente com uma tecnologia de última geração chamada virtual production, que mistura recursos digitais e físicos. Nesse contexto, o desabamento de um edifício — algo que já vimos centenas de vezes em séries e filmes — não deveria ser um motivo de destaque. E, no entanto, é, porque foi realizado inteiramente com produção virtual e ferramentas de efeitos visuais impulsionadas por inteligência artificial generativa. Um marco na Ibero-América, mas também na indústria audiovisual.
É a primeira vez que a gigante Netflix emprega essa ferramenta em uma de suas produções. Ted Sarandos, codiretor executivo e diretor de conteúdos da Netflix, admitia isso meses depois de seu lançamento. “Continuamos acreditando que a IA representa uma oportunidade incrível para ajudar os criadores a fazer melhores filmes e séries, não apenas mais baratos. É gente real fazendo um trabalho real”, segundo o norte-americano.
Para Sarandos, “utilizar ferramentas impulsionadas por IA alcança um resultado assombroso com uma velocidade notável”. A sequência do edifício desmoronando em O Eternauta “foi concluída 10 vezes mais rápido do que poderia ser feita com ferramentas e fluxos de trabalho de efeitos visuais tradicionais”. Menos tempo, menos dinheiro.
O que acontecerá quando um roteiro for sugerido por um algoritmo treinado em narrativas dominantes? Como se previne a homogeneização cultural de uma ferramenta treinada em inglês?
Na América Latina, onde os recursos financeiros para produção às vezes são limitados e a dependência de coproduções internacionais é alta, a inteligência artificial (IA) parece abrir novas oportunidades. Mas, se por um lado pode permitir baratear processos custosos como os efeitos visuais usados em O Eternauta, agilizar legendagens multilíngues e dublagens, e ampliar o acesso de criadores independentes a técnicas que antes estavam reservadas a grandes orçamentos, por outro lado também levanta dúvidas éticas e desafios para a propriedade intelectual, os direitos autorais e a diversidade cultural: o que acontecerá quando um roteiro for sugerido por um algoritmo treinado em narrativas dominantes? Como se protege a voz de criadores e criadoras diante da automatização? E como se previne a homogeneização cultural de uma ferramenta treinada em inglês?
Christoph Behl, criador audiovisual nascido na Alemanha e radicado na Argentina, defende que as possibilidades que a IA oferece “são infinitas”. “Posso me sentar em casa durante seis meses e fazer um filme: a escrita, os personagens…”, argumenta. Seu próximo filme, Property, será realizado entre 70% e 80% com ferramentas de IA (roteiro, imagens, cenas). Behl não o apresenta como uma substituição do trabalho humano, mas como o aproveitamento de um novo ecossistema criativo no qual o desafio será redefinir a autoria.
Em sua opinião, a ferramenta facilita uma produção que antes era difícil, algo que ele compara com a chegada das câmeras digitais, mas também coloca um desafio aos direitos autorais, tanto no caso do treinamento de modelos de inteligência artificial como das obras criadas com ela.
A necessidade de um marco regulatório
A indústria audiovisual está em transformação e ainda não existem respostas claras nem estruturas sólidas para enfrentá-la, segundo Behl. “Há um medo, para mim justificado (…) e uma indústria que claramente mudará e ainda não existem muitas propostas de organização.” A IA, assinala, “avançou e avança em uma velocidade cada vez mais rápida. Além disso, aprende de si mesma”. “Nunca na humanidade tivemos um processo tão acelerado de algo”, sublinha o realizador. Algo em que coincide o subdiretor-geral da UNESCO, Ernesto Ottone, em uma entrevista para este monográfico: “Não assumir que esta tecnologia nos permite acelerar os processos e reduzir os custos é absurdo. E, portanto, não abraçar essa oportunidade é um erro”, concluía o dirigente. Ottone também adverte que esse uso, apesar das reticências de alguns Estados, deve estar controlado. “Ainda que não se fale de regulação, é preciso estabelecer certos regras do que pode ou não pode ser feito”, enfatiza.
Nessa mesma linha, Behl situa no centro da discussão o impacto que a IA tem (e terá) nos direitos autorais e a necessidade de enfrentá-lo. Para o cineasta e acadêmico, os problemas se concentram em dois planos: o treinamento dos modelos e a autoria das novas obras. “Com o que estão treinados os modelos? Com vídeos, filmes, imagens e música criados por seres humanos. No entanto, o valor desses dados não é reconhecido”, explica. “Quem mais ganha é a empresa que usa um algoritmo que nem sequer inventou; em segundo lugar, quem fornece a infraestrutura; e o criador original, que aporta o dado, não recebe nada”, lamenta. Uma tendência que tentam conter em lugares como a Alemanha, onde a entidade de gestão de direitos musicais está em juízo com a OpenAI para que seja reconhecido o uso de repertório em seus modelos. Nesses casos, Behl aposta pela regulação de um mercado que evite os monopólios e a homogeneização.
Na Alemanha, a gestão de direitos musicais está em julgamento com a OpenAI para que seja reconhecido o uso de repertório em seus modelos.
Desde a UNESCO advertem sobre o perigo de usar uma IA treinada apenas em um idioma: “O desafio é assegurar diversidade não só de línguas, mas também integrar conhecimento indígena e pensamentos de populações minoritárias”, adverte o subdiretor do organismo, Ernesto Ottone. Garantir que mulheres, jovens, pessoas com deficiência, comunidades rurais e indígenas não fiquem para trás é um dos principais objetivos da Carta Digital Ibero-americana que será atualizada para abordar os recentes desenvolvimentos tecnológicos. “Trata-se de garantir a diversidade de expressões culturais em qualquer plataforma, física ou digital”, assinala Ottone, sublinhando que “o idioma é uma forma de pensar e, portanto, se você excluir outros, ficará apenas com uma visão de mundo — e, na história, isso já levou a coisas terríveis”.
Para preveni-lo, pesquisadores do Centro Nacional de Inteligência Artificial (CENIA), no Chile, estão desenvolvendo desde 2023 um novo modelo de inteligência artificial, Latam-gpt, que busca falar os idiomas da região e refletir suas culturas. A iniciativa faz parte de um movimento mais amplo no Sul Global para reduzir a dependência de sistemas de IA de origem estrangeira, a maioria dos quais é desenvolvida nos Estados Unidos, na China ou na Europa. Um objetivo-chave, segundo seus desenvolvedores, é preservar as línguas indígenas, com um tradutor inicial já desenvolvido para o Rapa Nui, a língua materna da Ilha de Páscoa.
A IA como criador
Mas o que acontece com os direitos autorais de obras criadas com IA? Behl não tem dúvidas: “Se alguém se senta três meses para trabalhar com essas ferramentas e cria um curta-metragem ou um filme, deve ter direito autoral sobre essa obra. Não podemos entregá-la de graça às empresas que fabricam os modelos”, afirma. O problema se agrava quando se trata de obras derivadas, como a fan fiction (produções baseadas em outras sagas ou videogames, por exemplo). “No momento em que você brinca com um mundo já criado, se depara com o direito autoral de alguém. Isso vai ser um problemão”, destaca.
Sua proposta é olhar para a música, onde a interpretação de obras alheias convive com a proteção da autoria original: “Talvez no audiovisual devamos repensar que o direito autoral, especialmente na escrita, é rígido demais para permitir essas novas formas de criação.” Devem ser reconhecidas novas figuras, como por exemplo a que ele denomina prompt generator. “Não é a IA que cria, mas sim a pessoa que a conduz, que escreve e que toma decisões estéticas.” Ele prevê que a tendência será “gerar certificados de humanidade”.
Behl também admite que outras figuras da indústria, como atores e atrizes, roteiristas… serão mais afetados, por isso volta a insistir na importância de regular. Dá um exemplo: em 2023, a Dinamarca aprovou uma legislação para reforçar a proteção da imagem pessoal frente a usos de IA, incluindo a semelhança facial gerada artificialmente.
“Há uma geração que tem medo do futuro. [Os jovens] são os que mais rápido percebem quão forte isso é”, aponta o diretor, que há anos fala em fóruns internacionais sobre o tema. Também é professor no novo curso de especialização em Inteligência Artificial aplicada à Arte Multimídia, criada pela Universidade das Artes da Argentina (UNA), que foi impulsionado por uma psicóloga, Isha Kim, e uma artista, Mercedes Invernizzi Oviedo, aKa Mecha MIO. A formação busca abordar tanto os fundamentos técnicos da IA quanto suas implicações éticas e culturais, com o objetivo de desenvolver um olhar crítico e social. O interesse superou as expectativas e tiveram de aumentar o número inicial de 20 alunos. Para Behl, é normal que um futuro que já se tornou tangível intimide os futuros criadores e criadoras: “Se eu fosse jovem, também teria medo de pensar: ‘qual é o meu lugar? Sou substituível? Como vou viver?’”