Uruguai resgata o legado documental de sua ditadura por meio do Iberarquivos

Um projeto de reconstrução histórica liderado pelo Arquivo Geral da Nação do Uruguai e apoiado pelo programa ibero-americano Iberarquivos permite conservar e digitalizar mais de 1.200 rolos de microfilme que documentam a repressão da última ditadura cívico-militar uruguaia (1973–1985).

Uruguai resgata o legado documental de sua ditadura por meio do Iberarquivos

Milhares de fichas com nomes, impressões digitais, atividades públicas ou clandestinas, pseudônimos e fotografias. Pastas inteiras de cidadãos classificados por “risco político”. Relatórios de inteligência, registros de censura, listas de exilados. Documentos originais que, há décadas, se amontoam e resistem em um porão do Arquivo Geral da Nação (AGN), em Montevidéu. São apenas algumas das peças do quebra-cabeça que o Uruguai busca reconstruir para compreender seu passado recente mais obscuro. E avança graças ao impulso de um projeto liderado pelo Arquivo Geral e financiado pelo programa Iberarquivos — enquadrado na Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB) —, que permitiu resgatar, conservar e digitalizar milhares de rolos de microfilme e microfichas que armazenam essa informação histórica.

Ao todo, são 1.218 rolos de filme que contêm mais de três milhões de imagens sobre a última ditadura cívico-militar uruguaia (1973–1985). São documentos oficiais — muitos considerados secretos ou que permaneceram ocultos da cidadania — conservados em condições precárias: deteriorados pela umidade, pelo calor e por outros fatores atmosféricos, pela passagem do tempo e pela manipulação, sem o devido cuidado. Mas o valor documental — histórico e humano — desses materiais é incalculável, segundo explicam do Arquivo Geral: constituem “provas contundentes e inapeláveis” de uma repressão sistemática dos delitos cometidos durante a última ditadura uruguaia, no marco do Plano Condor.

Hoje, boa parte desse material foi resgatado e digitalizado. “Lá estão as pastas com os nomes, os dados e os documentos pessoais, com as impressões digitais e até com os codinomes (pseudônimos) que tinham (os detidos políticos) e também suas famílias, incluindo as informações pessoais de mães, filhos… Tudo está guardado ali”, comenta Beatriz Muiño, arquivista do AGN, uma das profissionais que liderou o projeto. “Talvez não apareça registrado nesses documentos quem deu a ordem direta para fazer uma tortura, que é algo que muitos pesquisadores, jornalistas e cidadãos buscam, mas sim os indícios que dão conta disso. Lá se mostram os rastros dos seguimentos, das detenções, das torturas… Por exemplo, uma pessoa detida aparece entrando em uma prisão ou centro de detenção e 15 dias depois consta no hospital. Isso também é um dado. E é essa a leitura que deve ser feita. Que tudo isso existiu.”

Um arquivo do terror em risco

O projeto arquivístico — um dos mais importantes em matéria de recuperação da memória histórica no Uruguai — foi aprovado em 2019 pelo Iberarquivos, um programa de cooperação internacional impulsionado pela Secretaria-Geral Ibero-Americana, e executado entre 2020 e 2021. Incluiu a limpeza mecânica, diagnóstico de conservação, digitalização e criação de uma base de dados com software especializado. Desde então, o projeto permitiu conservar mais de 1.200 rolos de microfilme em risco, em muitos casos, o único rastro documental que dá testemunho de detenções, vigilâncias e operações clandestinas do regime militar.

Um dos materiais mais sensíveis corresponde aos fichários políticos criados pelas autoridades de fato, ou apreendidos de organizações como o Partido Comunista do Uruguai (PCU), documentos que catalogam os cidadãos segundo seu suposto nível de “periculosidade política” por categorias: A, B ou C. Também aparecem listas de exilados na Argentina, Chile ou Brasil. Em alguns casos, incluem relatórios sobre familiares dos detidos, vínculos pessoais e até fichas completas de menores de idade.

Os documentos resgatados são agora conservados em câmaras que garantem condições climáticas adequadas, respaldados por cópias de segurança e protegidos com sistemas de acesso controlado. Pesquisadores, vítimas e familiares de detidos, organismos de direitos humanos, jornalistas e cidadãos em geral podem acessar esses registros, muitos dos quais permitem reconstruir trajetórias, esclarecer casos de desaparecimentos ou fornecer provas em processos judiciais ainda em aberto, visitando o Arquivo Geral, mediante solicitação direta a essa instituição dependente do Ministério de Educação e Cultura (MEC). Desde a implementação do projeto, o arquivo recebeu quase 5.000 consultas.

Tecnologia a serviço dos direitos humanos

Um dos grandes desafios do projeto impulsionado pelo Iberarquivos foi garantir o acesso à informação sem colocar em risco os documentos originais. A tarefa não foi simples, conta a arquivista Muiño. Muitos dos materiais apresentavam o chamado “síndrome do vinagre”, uma decomposição química que produz ácidos e acelera seu deterioramento. Outros materiais estavam riscados, rasgados, afetados pela umidade ou com fungos visíveis. Por isso, o Arquivo Geral da Nação desenhou uma estratégia de digitalização controlada que permite consultar os documentos a partir de terminais específicas, respeitando a integridade física do material, bem como os direitos de privacidade e proteção de dados. Os trabalhos de limpeza mecânica e o diagnóstico de cada rolo foram realizados no Laboratório de Preservação Audiovisual (LAPA) da Universidade da República (Udelar), em coordenação com o Arquivo Geral. Depois, os especialistas desenharam o inventário digital e criaram uma base de dados mediante o software ATOM, especializado em gestão arquivística.

Mas, além do plano técnico, o valor do projeto reside em sua dimensão pública, política e humanitária, afirma Muiño, convencida de que os microfilmes conservados não são apenas “resíduos do aparato burocrático” do regime de fato. Para as vítimas e seus familiares, acessar esses documentos pode significar a recuperação de um fragmento de sua história; para a cidadania, uma forma de conhecer e assumir o ocorrido no chamado “passado recente”; e para a justiça, provas-chave de casos ainda abertos. “Este não é somente um projeto de conservação arquivística. É uma ferramenta para proteger e exercer o direito à verdade. É um ato de justiça”, resume a arquivista. E destaca que boa parte dos relatórios oficiais recuperados por meio deste trabalho de reconstrução são únicos. “Muitos documentos originais em papel já não existem; só restam esses rolos fílmicos, que agora podem ser salvos do esquecimento”, pondera.

De fato, essa política de recuperação documental se articula com outras iniciativas de reparação simbólica que buscam preservar a memória recente no Uruguai. Entre elas, o Museu da Memória (MUME), o Arquivo do Ministério do Interior Museu da Memória (MUME), o Arquivo do Ministério do Interior ou o trabalho da equipe de antropologia forense na busca e recuperação de restos de pessoas desaparecidas.

O compromisso do Iberarquivos

Em um quarto de século, o programa Iberarquivos vem impulsionando mais de 1.500 projetos em toda a América Latina, com um investimento global próximo de 10 milhões de euros. O Uruguai faz parte do Iberarquivos desde 2005 e, nesse período, executou mais de 120 projetos com um financiamento superior a 300.000 euros. O projeto “Arquivo Berrutti”, liderado pelo Arquivo Geral, foi selecionado na convocatória de 2019. Patrocinada e coordenada dentro do marco institucional da SEGIB, a iniciativa abrange arquivos públicos e privados sem fins lucrativos, especialmente aqueles voltados à preservação, digitalização, descrição e acesso a documentos de valor histórico e cultural. Entre os critérios que orientam a seleção dos projetos, destaca-se o enfoque na inclusão social, na equidade de gênero, no acesso e na proteção da memória de coletivos historicamente marginalizados.

A ditadura uruguaia, em números

O projeto de recuperação dos mais de 1.200 microfilmes impulsionado pelo Arquivo Geral da Nação (AGN) no Uruguai e patrocinado pelo programa Iberarquivos, no âmbito da Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB), faz parte de uma política mais ampla de “memória, verdade e justiça” que busca aportar informação sobre um dos períodos mais obscuros da história recente do país sul-americano. A ditadura cívico-militar uruguaia foi instalada em 1973, após um golpe de Estado que dissolveu o Parlamento, suspendeu as garantias constitucionais e consolidou o controle das Forças Armadas sobre a vida civil. Durante doze anos, o regime se sustentou mediante forte repressão, censura, perseguição, detenção e tortura a militantes sociais e políticos considerados “subversivos”, e uma militarização progressiva das instituições.

Segundo dados oficiais, mais de 6.000 pessoas foram detidas por motivos políticos durante esse período, e cerca de 200.000 uruguaios tiveram que se exilar, muitos deles em países vizinhos como Argentina, Brasil ou Chile. Pelo menos 197 pessoas foram vítimas de desaparecimento forçado ou assassinato político, muitas delas fora do país, no marco do denominado Plano Condor. Além disso, dezenas de milhares sofreram tortura sistemática em centros clandestinos, quartéis ou prisões.

O processo de recuperação documental financiado pelo programa ibero-americano Iberarquivos teve início formal em 2019, quando o Ministério de Defesa uruguaio transferiu ao Arquivo Geral da Nação a documentação relativa à última ditadura. Nesse contexto, o projeto de preservação de microfilmes permitiu resgatar 1.218 rolos, com cerca de três milhões de imagens que incluem fichas pessoais, relatórios de inteligência, listas de “suspeitos” e registros de vigilância política. O arquivo recebeu mais de 4.800 consultas de pesquisadores, jornalistas, familiares de vítimas e organizações de direitos humanos. O acesso controlado a esse acervo não apenas contribui para a investigação histórica e judicial, como também oferece à cidadania uma ferramenta para exercer “o direito à verdade”, nas palavras da arquivista Beatriz Muiño, funcionária do AGN e uma das profissionais que liderou esse projeto no Uruguai.

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