Bolívia: um modelo de respeito plurinacional na luta contra a violência de gênero

Bolívia: um modelo de respeito plurinacional na luta contra a violência de gênero

A redução da impunidade e o respeito pela justiça comunitária são pilares da luta contra a violência de gênero na Bolívia. Em um estado plurinacional com 36 nações, a justiça deve respeitar a cultura, a identidade e o idioma das vítimas de violência de gênero.

Na Bolívia conseguiram baixar os feminicídios em 28,31%, do 2024 ao 2020, com um modelo plurinacional, comunitário, solidário e desburocratizado. Em 2020 foram contabilizados 113 feminicídios; em 2021 foram 108; em 2022 foram registrados 94 assassinatos de mulheres por ser mulheres; em 2023 perderam a vida por sua condição de gênero 81 pessoas e, até o dia 9 de dezembro de 2024, foram reportados – também – 81 casos. Assim, o ano terminou com 84 mulheres assassinadas, em um leve aumento de 2024 a 2023, segundo os dados da Ministério Público Geral do Estado (FG).

A impunidade também diminuiudos 84 feminicídios de 2024 89% se encontra com os autores identificados e detidos em diferentes unidades penitenciárias cumprindo uma sentença condenatória ou em prisão preventiva. A violência não aumenta, mas a consciência, sim. As denúncias por violência se incrementaram, de 2021 a 2023, com um retrocesso durante o ano passado. Em 2021 foram 45.174; em 2022 ascenderam a 51.406; em 2023 aumentaram um pouco: a 51.770 e, até 30 de novembro de 2024, foram registradas 34.543; com uma diminuição ou estancamento que pode se dever a fatores locais ou a discursos regressivos a escala mundial que voltam a julgar as denunciantes e exculpar os machistas e violentos. 

A história de avanços começa há mais de uma década. A 9 de março de 2013 foi aprovada a “Lei Integral para Garantir às Mulheres uma Vida livre de Violência” (N°348). A norma criou a Força Especial de Luta contra a Violência (FELCV) dentro da instituição policial. O objetivo foi a prevenção e o combate à violência machista, além de contar com investigadores especializados para colaborar com os Ministérios Públicos durante a fase preparatória dos processos de violência familiar ou doméstica. O artigo 53 da regulamentação, sancionada há 12 anos, especificava: “Cria-se a Força Especial de Luta Contra a Violência, como órgão especializado da Polícia Boliviana responsável pela prevenção, assistência, investigação, identificação e prisão dos supostos responsáveis por atos de violência contra as mulheres e a família, sob a direção funcional do Ministério Público, em coordenação com entidades públicas e privadas. Sua estrutura, organização e procedimentos serão estabelecidos de acordo com o regulamento e contarão com quatro níveis de atuação. Garante-se a permanência de investigadores(as) especiais.” 

A Força Especial de Luta contra a Violência (FELCV) concentra, em um único espaço físico, todas as instâncias de atendimento às vítimas de violência

O caso da Bolívia está ressaltado no relatório “Boas Práticas Ibero-americanas desenvolvidas nos Serviços Especializados na Atenção, Proteção, Prevenção e Reparação Integral das mulheres vítimas de violência e sobreviventes, editado, em junho de 2024, pela Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB),  a Iniciativa Ibero-americana para Prevenir e Eliminar a Violência contra as Mulheres (IIPEVCM) e o Serviço Plurinacional da Mulher e da Despatriarcalização “Ana María Romero” do Estado Plurinacional da Bolívia.

Um êxito baseado em respostas sólidas e contundentes: leis e recursos

A resposta institucional boliviana à violência machista não parou de crescer e agora conta com uma área social e psicológica, onde profissionais elaboram relatórios para cada caso. Em todo o país, há 119 unidades. Na sede de Cochabamba, as vítimas de violência são atendidas em um único espaço, e o mesmo modelo está sendo replicado em La Paz e Santa Cruz. Uma dívida pendente é a oferta de atendimento permanente durante toda a semana. Nunca é suficiente, e sempre é possível – e necessário – melhorar. No Artigo 15 da Constituição Política do Estado se estabelece que todas as pessoas, em particular as mulheres, têm direito de não sofrer violência física, sexual ou psicológica, tanto no âmbito familiar quanto na sociedade, e que o Estado adotará as medidas necessárias para prevenir, eliminar e sancionar a violência de gênero e geracional, bem como toda ação ou omissão que tenha como objetivo degradar a condição humana, causar morte, dor e sofrimento físico, sexual ou psicológico, tanto no espaço público quanto no privado. 

Por outra parte, o Artigo 3 da Lei N° 348 para garantir às Mulheres uma Vida Livre de Violência. Assinala: “O Estado Plurinacional da Bolívia assume como prioridade a erradicação da violência contra as mulheres, por ser uma das formas mais extremas de discriminação de gênero. Os Órgãos do Estado e todas as instituições públicas adotarão as medidas e políticas necessárias, alocando os recursos econômicos e humanos suficientes de forma obrigatória.” Na Bolívia, 8 em cada 10 mulheres sofreram algum tipo de violência. Segundo o Observatório Manuela do Centro de Informação e Desenvolvimento da Mulher (CIDEM), de 2012. Por isso, as mulheres de organizações da sociedade civil ou de coletivos acompanham as vítimas de violência para garantir o acesso à justiça, oferecer solidariedade e acabar com a sensação de impunidade.

A Força Especial de Luta contra a Violência (FELCV) concentra, em um só espaço físico, todas as instâncias de atenção a vítimas de violência: os Serviços Legais Integrados Municipais (SLIM), o Ministério Público, os tribunais, o/a médico(a) legista, o serviço social, o serviço psicológico, as Defensorias da Infância e Adolescência (DNA), entre outros. A primeira FELCV Integral está localizada no departamento de Cochabamba, e nos departamentos de La Paz e Santa Cruz há duas unidades em construção. “A experiência mostra que a apresentação de denúncias por violência ocorre de forma ágil, já que todos os serviços estão concentrados em um único espaço físico, evitando que a vítima precise se deslocar de um lugar para outro ou desista de continuar o processo devido ao tempo e aos recursos econômicos que a tramitação exige; mas, acima de tudo, evita-se a revitimização”, destaca Wendy Pérez Salinas, diretora do Serviço Plurinacional da Mulher e a Despatriarcalização (SEPMUD).

A experiência da Bolívia é central para entender que o enfoque de gênero não dilui as diferenças, as identidades e os conhecimentos ancestrais. A Constituição Política do Estado assume o pluralismo jurídico em seu artigo 1 no qual se estabelece: “A Bolívia se constitui em um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomias. A Bolívia é fundada na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico, dentro do processo integrador do país”. Além disso, em 2010, foi aprovada a Lei de Deslinde Jurisdicional, que busca regular os âmbitos de vigência, dispostos na Constituição Política do Estado, entre a jurisdição indígena originária camponesa e as outras jurisdições reconhecidas constitucionalmente. Essa lei estabelece que a jurisdição indígena originária camponesa é a potestade que as nações e povos indígenas originários camponeses possuem para administrar justiça de acordo com seu próprio sistema de justiça, exercendo-a por meio de suas autoridades, no marco do que está estabelecido no artigo 7 da Constituição Política do Estado

A experiência da Bolívia é central para entender que o enfoque de gênero não dilui as diferenças, as identidades e os conhecimentos ancestrais

Quais são as formas de justiça comunitária? Pérez explica: “As decisões da autoridade indígena estão baseadas em seus usos e costumes”. Na Bolívia, há 36 nações que convivem em uma organização plurinacional. “Os funcionários dos serviços de atendimento às vítimas de violência possuem especialização na área de violência contra a mulher e, ao mesmo tempo, recebem capacitação para oferecer um atendimento cordial, com qualidade e acolhimento. A Bolívia é um Estado Plurinacional, o que significa que, em seu território, coexistem diversas nações, e os operadores judiciais, ao atenderem mulheres vítimas de violência, devem respeitar sua identidade, cultura e até mesmo seu idioma”, detalha Pérez.

Nos casos de feminicídios e violação o julgamento é nos tribunais. Porém, em outras causas, a resolução de conflitos é exercida de forma comunitária e pela autoridade designada pelos povos originários. “Na jurisdição indígena originária camponesa, mantém-se o princípio de viver em comunidade, o que se traduz na resolução de conflitos na presença da comunidade (assembleia), sob a direção do jilakata ou mallku (autoridade indígena). As infrações na comunidade que são consideradas crimes no âmbito da Lei 348 são resolvidas pela autoridade indígena de acordo com seus usos e costumes; exceto os crimes de feminicídio e estupro, que são encaminhados à jurisdição ordinária para o julgamento do agressor”, contextualiza a diretora do SEPMUD.

Nos casos de violência contra a mulher os operadores de justiça devem ter em consideração as obrigações gerais estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana que reforçam e se complementam com as obrigações derivadas da Convenção de Belém do Pará; que em seu artigo 7.b) obriga os Estados a utilizarem a devida diligência para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher. Diante de um ato de violência sexual ou da ocorrência de um feminicídio, é especialmente importante que as autoridades responsáveis pela investigação atuem com determinação e eficácia, levando em conta as obrigações do Estado de erradicar esses crimes e de proporcionar confiança às vítimas nas instituições estatais para sua proteção. 

Outro desafio é manter com dignidade a vida das mulheres migrantes em outros países da América Latina ou Europa, quando sofrem maus-tratos, sequestros, agressões ou abusos. “A repatriação de mulheres vítimas de violência é um processo complexo que implica um retorno seguro e digno, em contextos de conflito, tráfico de pessoas, violência de gênero ou deslocamento forçado”, enumera a funcionária. Ela ressalta: “Nos últimos anos, os casos de violência dos quais são vítimas compatriotas no exterior podem parecer isolados; no entanto, apenas demonstram que a violência familiar ou doméstica transcende fronteiras. Além das medidas de punição aplicadas no país de residência, ainda há a questão da reintegração social, que pode estar relacionada à mudança de projeto de vida, forçando essas mulheres a retornar ao seu país de origem. No caso de violência extrema, como o feminicídio, é necessário cuidar do bem-estar dos filhos que ficaram órfãos e precisam retornar ao país de origem. Assim, embora a situação legal do agressor siga seu curso no país onde ocorreu a agressão, resta a situação da mulher e de seus filhos, ou apenas dos filhos órfãos, que retornam ao país.” 

Outro desafio é manter com dignidade a vida das mulheres migrantes em outros países da América Latina ou Europa, quando sofrem maus-tratos, sequestros, agressões ou abusos

A Direção Geral de Assuntos Consulares, através do Vice Ministério de Gestão Institucional e Consular do Ministério de Relações Exteriores realiza assistência consular; coordenação com autoridades locais; organização de voos; auxílio com documentação; fornecimento de informações e orientações; e colaboração com ONGs, em casos que demandam uma ampla rede de apoio. Além disso, o SEPMUD está desenvolvendo uma Caixa de Ferramentas com informações básicas para mulheres vítimas de violência de gênero que vivem ou viveram fora da Bolívia e que sofreram agressões físicas, psicológicas e/ou sexuais. 

Continuar lendo