A revolução dos cuidados:do discurso à ação

A revolução dos cuidados:do discurso à ação
Portrait of a home caregiver with patients in living room at home

“Se fizermos bem, este Pacto pode ser um motor democratizador brutal.” Quem diz isso é Lucy Garrido, histórica dirigente de Cotidiano Mulher e da Articulação Feminista Marcosur, com a segurança de quem lutou essa batalha durante anos. Ela se refere ao Pacto Birregional pelos Cuidados assinado pela União Europeia e pela América Latina e o Caribe no último novembro, na cúpula UE–CELAC em Santa Marta (Colômbia). Um marco histórico na economia dos cuidados.

A declaração entusiasmada de Garrido também revela uma camada externa de cautela. Ela e as oitenta organizações da sociedade civil que estão por trás do Pacto sabem que ele pode representar um ponto e aparte na luta das mulheres pelo reconhecimento dos cuidados como um direito, mas também são conscientes das dificuldades que implica passar do discurso à ação. “Avançamos duas casas no tabuleiro, não as dez que queríamos, mas sim duas ou três — e isso já é um avanço importante”, afirma Garrido com um toque de ironia.

Sob o texto oficial pulsa uma década de esforço de múltiplos atores, cansados das profundas desigualdades sociais e de gênero que limitam o modelo social dos cuidados. Entre todos, conseguiram uma grande vitória: situar o cuidado como um direito humano exigível e não como um assunto doméstico, privado ou voluntarista. “Antes não havia nem uma linha sobre os cuidados como direito em nenhum documento governamental. Agora conseguimos um acordo assinado por quase todos os países da América Latina e por toda a União Europeia. É um avanço importante”, destaca a dirigente feminista.

Embora o contexto hostil de crises acumuladas, corrupção crescente, multilateralismo questionado e o avanço de discursos conservadores possa assustar, a base está posta. O Pacto representa uma virada deliberada rumo à esperança na qual ambas as regiões compartilham objetivos comuns: construir sistemas integrais de cuidados, cooperar em pesquisa e avaliação, distribuir equitativamente as responsabilidades e reconhecer o trabalho de cuidado não remunerado.

Se o trabalho de cuidado se profissionalizasse, geraria entre 8 e 12 milhões de empregos formais, principalmente para mulheres.

Os números não mentem, embora doam. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 76% dos cuidados não remunerados a nível mundial recai sobre os já carregados ombros das mulheres. A atribuição tradicional de papéis nas sociedades patriarcais nas quais ainda vivemos tem grande parte da culpa disso.
Essa tradição ancestral, somada a outros fatores econômicos, políticos e sociais, faz com que as mulheres da América Latina e do Caribe dediquem, segundo a CEPAL, entre 22% e 42% de seu tempo a esse tipo de trabalho — não pago e não reconhecido — o que representa, em média, 75 horas semanais, frente às 25 horas que eles dedicam.

Traduzido em termos econômicos, o valor desse trabalho invisível representa entre 20% e 27% do PIB regional, segundo estimativas da CEPAL. Em países como México ou El Salvador, supera 25%. A boa notícia é que, se fosse profissionalizado e remunerado, geraria entre 8 e 12 milhões de empregos formais, a maioria para mulheres, e reduziria a pobreza feminina entre 10% e 20%.

Um problema que começa na infância

A desigualdade, porém, começa muito antes, na infância. Na Argentina, sete em cada dez adolescentes de 15 a 17 anos realizam tarefas de cuidado, e 45% são meninas. “Isso deveria ser um alerta tremendo”, clama Laura Pautassi, doutora em Direito e principal impulsionadora da Consulta 31/2025 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). “Crianças e adolescentes — sobretudo elas — cuidam de irmãos menores e de avós doentes porque não há infraestrutura pública suficiente. Estamos roubando sua infância.”

“Reconhecer essa contribuição e redistribuir responsabilidades não é um gasto, é um investimento em autonomia, bem-estar e coesão social. Sem cuidados não há tempo, nem saúde, nem oportunidades: nada do que entendemos como vida social e econômica seria possível”, afirma Florencia Di Filippo, especialista da Divisão de Gênero da Secretaria-Geral Ibero-Americana. Não por acaso, o pacto se sustenta em valores compartilhados entre ambas as regiões: dignidade, justiça social e igualdade de gênero, e nasce com vocação inclusiva.

Garrido acrescenta um matiz nesse sentido: “Se vemos os cuidados apenas como um serviço, estamos mercantilizando-os e, então, deixam de ser um direito. Temos que prestar atenção nisso. Precisamos entender os cuidados como um bem público. Se o reconhecermos assim, o paradigma muda.”

Embora a brecha seja menor na Europa, ela ainda existe: as mulheres dedicam o dobro de tempo que os homens às tarefas de cuidado, segundo o Eurostat. E o envelhecimento acelerado — um em cada quatro europeus terá mais de 65 anos em 2050 — faz com que a pressão sobre os sistemas públicos seja cada vez maior.

A Opinião Consultiva 31/2025 da CIDH reconhece pela primeira vez o direito ao cuidado como direito humano autônomo

Um reconhecimento histórico

O pacto chega apenas um ano depois de um acontecimento histórico: a Opinião Consultiva 31/2025 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), solicitada pela Argentina e pelo Uruguai. Além de ter sido um dos processos com maior participação da história do tribunal — mais de setenta amicus curiae entre governos, academia e sociedade civil —, o realmente relevante é que, pela primeira vez, reconheceu-se o direito ao cuidado como direito humano autônomo com três dimensões: o direito de cuidar em condições dignas, o direito de ser cuidado e o direito ao autocuidado.

Sob uma ótica jurídica, Pautassi sustenta que o Pacto deve incorporar os padrões da Opinião Consultiva: universalidade, interseccionalidade, autonomia da vontade e não discriminação. Não diz aos Estados como fazê-lo — podem ser sistemas nacionais de cuidados como os do Uruguai ou Costa Rica, reformas institucionais como na Colômbia ou políticas específicas —, mas deixa claro que devem ser cumpridos porque se trata de um direito econômico, social e cultural de satisfação imediata.

“É preciso tirar o cuidado da lógica capacitista e da caridade. Este é um direito realmente transformador que coloca a pessoa no centro, independentemente de sua capacidade, idade, vulnerabilidade ou condição migratória. Fazer isso — acrescenta — é uma forma de garantir que meninas, meninos, pessoas idosas, pessoas com deficiência e migrantes não sejam considerados ‘grupos especiais’, mas parte estrutural do sistema de cuidados.”

Na mesma linha, Garrido afirma: “Ainda que as mulheres sejamos a razão principal pela qual tudo isso começou, esse direito não diz respeito apenas às mulheres. Os cuidados começam por cuidar da paz, da cidadania, do planeta, da democracia. Que direitos vamos exercer se não houver democracia? Também há muitas crianças e muitas pessoas migrantes sem trabalho que não podem ser deixadas para trás. Por isso, estou convencida de que o Pacto Birregional é bom para todos.”

O Pacto diante de três desafios estruturais: cultura, dinheiro e controle

Apesar da satisfação, as organizações que impulsionaram esse processo olham para o futuro com cautela: “Avançamos dois ou três pontos no tabuleiro de jogo, não os dez pontos que queremos”, reitera Garrido. “Agora é hora de continuar trabalhando para que o Pacto não fique apenas em uma declaração e se transforme em ações concretas.”

Três obstáculos estruturais o ameaçam: o cultural — a tradição que continua sustentando o patriarcado —, o econômico — compromissos financeiros pouco claros — e a falta de controle real — monitoramento e prestação de contas. Para Pautassi, os três estão concatenados.
“Para mim, o desafio cultural é talvez o mais urgente. Estamos em um momento em que está ocorrendo o avanço de governos ultraconservadores que não só ameaçam, mas em alguns casos já estão restringindo direitos conquistados pelas mulheres. Em alguns casos, o discurso de devolver os cuidados à família e retirar o Estado desse âmbito está voltando, quando o que avançamos foi, justamente, na responsabilidade dos Estados”, explica Pautassi.

Na América Latina, quinze países contam hoje com sistemas ou políticas de cuidados em diferentes níveis de desenvolvimento, e muitos governos locais conseguiram avanços concretos em licenças, provisão de serviços e infraestrutura. No entanto — como argumenta a jurista argentina — esse progresso convive com uma contraofensiva que busca voltar a centralizar os cuidados na família, enfraquecendo não só a corresponsabilidade estatal, mas também o exercício pleno da cidadania das mulheres.

O mecanismo de controle é outra das tarefas pendentes. “Precisamos de um mecanismo formal no qual distintos atores relevantes possam debater propostas, prestar contas e vigiar o cumprimento. Não somos bobos. Sabemos que é imprescindível que exista esse mecanismo de controle para que o pacto se concretize em ações reais e não fique em letra morta”, afirma Garrido. Para ela, é necessário que organizações e redes participem do diálogo birregional.

E depois vem o dinheiro. Além do aspecto financeiro, Pautassi defende que os cuidados, longe de serem um gasto, são um investimento em termos de equidade, justiça social e produtividade — têm muito a ver com o progresso e com a democracia. No entanto, tanto as organizações civis quanto os coletivos feministas são conscientes de que a melhor política é inútil se não houver financiamento adequado.

Por ora, ninguém sabe — ou ninguém diz — de onde virá o dinheiro “porque os direitos custam dinheiro, não são gratuitos, deveriam ser, mas não são. Implementá-los e garanti-los custa dinheiro. Como organização da sociedade civil, acreditamos que são os Estados que têm que garantir os direitos e financiar os custos”, adverte Garrido.

No entanto, ciente tanto das dificuldades quanto da oportunidade que o pacto representa, ela acrescenta: “Isso não significa que sejamos contra que as empresas privadas também participem, desde que o façam com responsabilidade. O Pacto pode ser um bom negócio para todos, e digo isso num sentido positivo — imagina, 22% do PIB de cada país — mas, atenção! não pode se transformar em o negócio, porque se trata de igualdade substantiva, de direitos da cidadania. Justamente por isso, quando os Estados não estão financiando, têm que estar fiscalizando — o mesmo que a sociedade civil. Por isso é tão importante conseguir um mecanismo de controle.”

ODS 10: o indicador chave para 2030

Perguntadas sobre o indicador que, em 2030, permitirá saber se o pacto teve impacto real tanto na América Latina quanto na Europa, as respostas convergem na redução das desigualdades de gênero e geracionais.

“Um indicador chave seria quanto avançamos na participação dos homens nas tarefas de cuidado não remunerado”, propõe Pautassi. “Se não movermos essa agulha, continuaremos tendo mulheres sobrecarregadas e democracias inacabadas. O cuidado está intimamente ligado ao ODS 10, que busca reduzir a desigualdade dentro e entre os países, promovendo a inclusão social, econômica e política de todas as pessoas, sem importar sua origem, gênero, idade, deficiência, raça, religião ou situação econômica — mais até do que ao ODS 5, igualdade de gênero.”

O caminho percorrido e o momento atual levam a pensar que o Pacto Birregional pelos Cuidados não é uma utopia amável nem uma ideia de alguns grupos feministas e sociais: é um projeto estratégico, ambicioso e profundamente transformador, que — segundo suas protagonistas — deve se concretizar com a participação real da sociedade civil, um financiamento justo e mecanismos vinculantes de prestação de contas. Só assim, afirma Garrido, é possível redefinir o contrato social entre indivíduos, Estados e comunidades.

Resta ver se o Pacto conseguirá transformar aquelas 75 horas semanais que as mulheres dedicam a cuidar sem remuneração em empregos dignos, em direitos exigíveis, em democracia real. Por ora, é uma aposta. Uma aposta que conta com o apoio de grande parte dos países de ambos os continentes e com a pressão de centenas de organizações decididas a não deixá-lo morrer no papel. Talvez o pensamento de Lucy Garrido possa servir de guia: “Se tivermos coragem e fizermos bem, este pacto pode ser um motor democratizador brutal.”