Ódio sem rede: A violência digital desempodera as mulheres

Ódio sem rede: A violência digital desempodera as mulheres

O ciclo de webinars “Prevenir a Violência Digital contra as Mulheres na Ibero-América”, organizado pela SEGIB, pelo PNUD e pela Iniciativa Ibero-Americana para Prevenir e Eliminar a Violência contra as Mulheres (IIPEVCM), analisou o impacto dos discursos de ódio, as alternativas legislativas e as medidas de reparação para as vítimas.

Uma garota marca um encontro, é filmada sem permissão por um celular e o vídeo circula pela escola. Uma mulher troca mensagens íntimas com um amante e enviam fotos consensuais, mas ele as expõe no trabalho. Um casal se separa, e a esposa exige divisão de bens, mas ele ameaça publicar em um site pornô os vídeos capturados pela câmera de segurança que a mostram nua. Um rapaz encontra outro em um hotel, que diz vender conteúdo erótico e exige que gravem algo para “valer a pena” ou que ele devolva o dinheiro do quarto e do jantar. Uma garota trans tira uma foto na praia e a crueldade dos comentários transforma o sol do verão em uma nuvem de pensamentos que a impedem de continuar mostrando sua vida como suas colegas da faculdade. Uma jornalista precisa dizer aos filhos que não pode mais parabenizá-los por seus aniversários nas redes sociais porque está ameaçada e não quer colocá-los em risco; mas eles sentem que sua mãe não está mais orgulhosa deles e que não demonstra mais carinho na frente de seus amigos, acreditando que o trabalho roubou aquele post de aniversário que eles tanto adoravam.

A violência digital assume múltiplas formas, mas transforma a informação em apedrejamento; o sexo em pesadelo; a violência machista em normalidade e a exposição em uma inquisição.

Neste contexto, a Secretaria-Geral Ibero-americana (SEGIB), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Iniciativa Ibero-americana para Prevenir e Eliminar a Violência contra as Mulheres (IIPEVCM), realizaram o ciclo de webinars “Prevenir a Violência Digital contra as Mulheres na Ibero-América”, no final de 2024.

“Essa violência vai além das telas e afeta a vida das mulheres de maneira integral. Precisamos de respostas coordenadas que incluam prevenção, punição e reparação”, enfatizou Florencia Difilippo, Especialista em Gênero da SEGIB. Nos três encontros virtuais – com 350 assistentes – foi abordada a complexidade dos discursos de ódio, as estratégias de proteção e reparação, e a preservação de evidências digitais.

A seguir, uma breve resenha dos três webinars.

Violência contra as mulheres e discursos de ódio: efeitos na participação pública e política das mulheres (realizado a 2 de dezembro)

A advogada colombiana Catalina Botero alertou sobre o risco para a democracia causado pela erosão que o protagonismo de mulheres em espaços políticos, jornalísticos ou culturais sofre. A jurista destacou a importância de aplicar o Código Penal nos casos mais graves de divulgação de imagens privadas, incitação direta à violência e incidentes que envolvam menores de idade. A violência digital afeta diretamente jornalistas, defensoras de direitos humanos e mulheres na política. Aquelas que estão na linha de frente, com grande número de seguidores, que causam impacto ou exercem influência social, estão particularmente vulneráveis a agressões que não são inofensivas: elas geram um retrocesso concreto na participação de mulheres nos espaços públicos. A era do empoderamento desacelerou, e há “mulheres que se afastam dos lobos” porque preferem a paz e um perfil discreto ao assédio constante. Não é o síndrome da impostora, mas sim é a síndrome da inibida. Não são aquelas que acreditam que não sabem, mas sim aquelas que se veem forçadas a silenciar para não se quebrarem.

Por sua vez, Alejandra Negrete, especialista mexicana em direitos humanos, destacou que as agressões não são casuais nem espontâneas, mas orquestradas por grupos que buscam silenciar vozes femininas na política, no jornalismo e na defesa dos direitos humanos. Não se trata de movimentos espontâneos (orgânicos em termos digitais), mas sim de grupos organizados que buscam calar as mulheres e que têm em seus usuários funcionários públicos, autoridades políticas e o crime organizado. Por outro lado, Negrete afirmou que é possível buscar reparações no âmbito do direito civil, mas, acima de tudo, destacou a importância de promover uma mudança cultural. É uma batalha que acontece em todos os lugares, mas diante da qual nem todos têm a mesma capacidade de atacar e se defender. Do Panamá, Leopoldo Alfaro, diretor do Centro de Estudos e Monitoramento Digital (CEMD), refletiu sobre os desafios que os Estados menores enfrentam diante dos gigantes tecnológicos, que se escudam na liberdade de expressão para evitar sanções. Ele também alertou que, em nome da liberdade de expressão, não se pode permitir a agressão sistemática.

Estratégias de proteção e reparação (realizado a 10 de dezembro)

A ativista mexicana Marcela Hernández Oropa relatou o impacto do movimento gerado pela Lei Olímpia no México e replicou a norma na Argentina em um dominó latino-americano que sabe aprender com as experiências e unir a luta, sem deixar de se adaptar aos contextos para buscar soluções. “Cada reforma é um passo rumo à desnaturalização da violência,” incentivou.
No âmbito jurídico, Pilar Badillo Virués alertou sobre o impacto da inteligência artificial e os riscos de perpetuar formas de violência contra as mulheres. A comunicadora Paz Peña destacou: “O desenho das políticas de cibersegurança deve começar com a inclusão das vozes das mulheres”. Enquanto Liz Velarde, ativista feminista do CiberWarmis, ressaltou a necessidade de promover a igualdade digital: “para fechar essas lacunas por meio da sororidade e da formação comunitária”, afirmou.
Outro desafio complexo é como alcançar os homens jovens em um cenário de polarização extrema, com a chamada “machosfera” servindo de combustível para incitar o ódio e com grande dificuldade de criar conteúdos que tenham o mesmo impacto que receitas de proteínas, apostas esportivas e conselhos financeiros para “tubarões” que, mesmo sem nadadeiras, atraem audiências massivas. Apenas no Equador, Espanha, México, Peru, República Dominicana e Argentina existem iniciativas legislativas. Porém, mesmo assim, as ferramentas atuais não são suficientes para enfrentar um fenômeno que, em nome da liberdade de expressão, está silenciando mulheres, fomentando o racismo, tolerando a discriminação e permitindo a exibição não consentida de jovens ou a inibição de ações para evitar ser gravada ou exposta.

“Evidência digital, cibercrime e cibersegurança” (realizado a 17 de dezembro)

A promotora argentina, especializada em crimes cibernéticos, Daniela Dupuy, explicou como a falta de cooperação entre países e plataformas dificulta a resolução de casos: “O tempo é crucial para preservar a evidência”. Ela destacou a importância de avançar com um guia regional para a preservação de evidências digitais contra as mulheres; fortalecer a cooperação internacional entre países para a investigação de crimes transnacionais; e avançar em campanhas e estratégias de prevenção no âmbito do sistema educacional.

A comunicadora peruana Marieliv Flores detalhou como as vítimas frequentemente recorrem a métodos caseiros para documentar agressões digitais, ações que acabam por aumentar sua revitimização, e alertou que os marcos legais atuais não garantem que as vítimas tenham um processo reparador ou justo. A advogada Adilia de las Mercedes aprofundou nos riscos de tecnologias como os algoritmos tendenciosos, que perpetuam desigualdades de gênero e racismo. E alertou: “É fundamental um enfoque integral, não apenas penal”. Além disso, destacou que a discriminação algorítmica reproduz preconceitos de gênero e raciais contra mulheres racializadas, o que pode ampliar as desigualdades sociais.

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Direitos Digitais
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