Praças, parques, vias e mercados: De quem é o espaço público?

Praças, parques, vias e mercados: De quem é o espaço público?

Há mais de meio século, o Direito à Cidade propõe cidades e assentamentos humanos livres de discriminação por motivos de gênero, estado de saúde, renda, nacionalidade, origem étnica, condição migratória ou orientação política, religiosa ou sexual, onde todos os habitantes, permanentes e temporários, sejam considerados cidadãos e tratados com igualdade. Trata-se de habitar a cidade em toda sua amplitude.

Falamos de um direito coletivo que defende a democratização do espaço urbano, a justiça social, a inclusão e a participação cidadã na tomada de decisões que afetam a vida urbana, tendo o espaço público como uma de suas manifestações mais concretas.

Segundo o Programa de Espaço Público da ONU-Habitat, dirigido pelo arquiteto peruano José Chong, praças, parques e ruas são lugares de encontro, interação e atividade comunitária, fundamentais para garantir a inclusão. Nesses espaços, a cidadania exerce seu direito à livre expressão, à organização coletiva e à participação política e cultural na cidade.

A qualidade, acessibilidade e equidade dos espaços públicos são indicadores diretos do cumprimento do Direito à Cidade, e as intervenções urbanas podem se tornar uma ferramenta eficaz para melhorar a coesão social e enfrentar a desigualdade nas cidades, como foi discutido no VI Encontro de Placemaking Latino-América em Bogotá e o IX Festival Internacional de Intervenções Urbanas em Medellín que organiza o movimiento Espaços Vivos.

Ativistas do espaço público

Diversos arquitetos, urbanistas, sociólogos e ativistas contribuíram para a reflexão e transformação dos espaços públicos na Ibero-América, demonstrando que, apesar das dificuldades, os ambientes comunitários são vitais para a interação social, a cultura e a organização política.

Na sociologia, o argentino Javier Auyero estuda a dinâmica social em assentamentos marginais na Argentina, focando em como os espaços públicos são utilizados para a organização política e social em contextos de pobreza.

Em sua obra fundamental O Mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro (1979), Janice Perlman revelou como as comunidades do Brasil e as comunidades marginalizadas utilizam o espaço público para criar redes sociais e resistir à exclusão.

No campo da sociologia urbana, a brasileira-estadunidense Teresa Caldeira abordou em Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo como a segregação urbana e as dinâmicas de violência afetam o uso do espaço público na cidade brasileira, e como os residentes interagem com esses espaços apesar das barreiras sociais.

Na arquitetura, o argentino radicado no Brasil Jorge Mario Jáuregui trabalhou na integração de espaços públicos nas comunidades do Brasil, projetando iniciativas que melhoram a qualidade de vida em áreas marginais, criando praças, parques e áreas recreativas.

O arquiteto chileno Alejandro Aravena, vencedor do Prêmio Pritzker em 2016, é conhecido por seu enfoque inovador em design arquitetônico e urbanístico, centrado na sustentabilidade, participação comunitária e inclusão social. Por meio de seu estúdio Elemental, desenvolveu diversos projetos de espaço público que buscam melhorar a qualidade de vida em áreas urbanas, especialmente em contextos de pobreza e marginalidade. O Parque Bicentenário da Infância em Santiago, o Plano Urbano de Calama e o conjunto habitacional Quinta Monroy em Iquique, todos no Chile, são exemplos disso.

Raquel Rolnik, arquiteta e urbanista brasileira e ex-relatora da ONU para Moradia Adequada, em Guerra urbana: a habitação sob o império das finanças, examina o direito à cidade e como os espaços públicos são essenciais para a vida urbana na América Latina, especialmente em contextos de crise habitacional.

Pedestres e pessoas com mobilidade reduzida

Outro desafio urgente para as cidades que afeta a gestão do espaço público é garantir o direito à mobilidade para todos os habitantes: desde a melhoria do transporte público e infraestrutura viária até a promoção de modos ativos como caminhar, que constitui a base de uma mobilidade urbana sustentável, segura e inclusiva.

No México, diversas organizações da sociedade civil propuseram um documento para que as autoridades locais adotem medidas concretas em favor dos pedestres: a Carta dos Direitos dos Pedestres. Nela, os membros do movimento Liga de Pedestres identificaram 10 aspectos básicos que devem ser cumpridos em nossas cidades.

A Espanha possui uma legislação sólida em matéria de acessibilidade para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, e Portugal desenvolveu estratégias nacionais que estabelecem normas para garantir a acessibilidade universal em espaços públicos e privados.

Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, México e Peru também promulgaram leis que promovem a acessibilidade e a inclusão, embora a implementação e o cumprimento dessas normas variem de acordo com os recursos e a vontade política de cada região.


A arquiteta, ativista e acadêmica Ana Falú centrou sua carreira no feminismo urbano, abordando a relação entre gênero e espaço público, trabalhando para tornar os espaços urbanos mais inclusivos e seguros para as mulheres. Falú foi pioneira da arquitetura com visão de gênero e é uma das referências mundiais no tema.

Alfredo Brillembourg e Hubert Klumpner, Fundadores do Urban-Think Tank (U-TT), se concentram no desenvolvimento de soluções urbanas para comunidades marginalizadas na América Latina, especialmente em Caracas, Venezuela, onde propuseram infraestrutura urbana que revitaliza espaços públicos em bairros desfavorecidos. Exemplos incluem o Ginásio Vertical, o Metro Cable de San Agustín e a sede da escola Fava para pessoas com autismo, todos na capital venezuelana.

Lucía Capanema Alvares, arquiteta especializada em urbanismo e professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) do Brasil, concentra sua pesquisa na relação entre planejamento urbano, movimentos sociais e o uso dos espaços públicos sob uma perspectiva crítica. Em Espaços públicos urbanos: de políticas planejadas a políticas cotidianas (2018), coeditado com Jorge Luiz Barbosa, Capanema examina como as políticas urbanas afetam os espaços públicos e como os cidadãos os utilizam para manifestar e confrontar as desigualdades impostas.

Turistificação

O crescente fenômeno da turistificação está transformando o espaço público, cada vez mais, para privilegiar seu uso pelos visitantes, resultando em reconfigurações na economia, na estética e nas dinâmicas sociais das áreas afetadas.

O especialista em urbanismo Jorge Sequera destaca como esse fenômeno “transformou o uso do espaço público, gerando efeitos como a massificação, a reconversão de bairros em zonas voltadas para o turismo e a elitização de certos espaços urbanos. Essas mudanças provocaram a perda do caráter local de muitos bairros, onde os moradores perdem acesso a habitações acessíveis e a espaços públicos que anteriormente lhes pertenciam.” Para Sequera, essa reconfiguração gera desigualdades significativas, desloca comunidades locais e cria ambientes mais exclusivos e menos inclusivos.

O tema é polêmico, dado o peso do turismo – não só o urbano – no PIB dos 22 países ibero-americanos: 7,9% na América Latina e Caribe, 9,5% em Portugal e 12,8% na Espanha.

Na declaração da XXVI Cúpula Ibero-americana de Chefes de Estado e de Governo realizada na Guatemala, nasceu a Estratégia Ibero-americana de Turismo e Desenvolvimento Sustentável, impulsionada pela SEGIB, UN Tourism e UCCI. Sua meta concreta: promover políticas públicas e ferramentas que fomentem o turismo como fator-chave para alcançar a Agenda 2030. A aposta envolve um modelo turístico que potencie o desenvolvimento econômico e social das comunidades locais a partir da inovação, da sustentabilidade e da acessibilidade.

Com 25 hectares cultiváveis, 155 horticultores e um centro agroecológico de pesquisa, a cidade argentina de Rosario é um exemplo destacado no desdobramento de hortas urbanas como parte de sua estratégia de economia de proximidade. O programa transformou espaços urbanos subutilizados em hortas produtivas, geridas pelas comunidades locais. As hortas fornecem alimentos frescos e orgânicos à comunidade, além de gerar empregos e fortalecer os laços comunitários. Também se promoveu a comercialização direta desses produtos em mercados locais e feiras, impulsionando a autossuficiência alimentar e a economia local.


“A chamada gentrificação ameaça a convivência e mina a sustentabilidade das cidades, expulsa os habitantes dos centros urbanos devido ao aumento massivo de habitações turísticas e até questiona a sobrevivência da cultura sobre a qual se desenvolvem. O turismo de proximidade, no entanto, contribui para o reequilíbrio territorial que beneficia os setores populares”, destaca o arquiteto e urbanista mexicano Carlos Moreno, criador do conceito de Cidade de 15 minutos.

Economia de proximidade

As múltiplas crises que a sociedade global enfrenta estão gerando mudanças estruturais nos modelos de produção e consumo. Nesse sentido, as economias de proximidade dão prioridade à produção, consumo e circulação local de bens e serviços e apresentam diversas vantagens em comparação com as economias de grande escala. Elas criam empregos, reduzem as taxas de pobreza e promovem uma maior coesão social.

Além disso, geram conexões sociais mais fortes e comunidades mais participativas, ao incentivar produtores e consumidores locais a interagir, gerando confiança e capital social dentro da comunidade. Com a redução das cadeias de fornecimento de bens e serviços, também se diminui o impacto ambiental das atividades econômicas, favorecendo a economia circular e o uso mais eficiente das infraestruturas.

Bogotá desenvolveu uma rede de mercados móveis de proximidade que conecta diretamente os produtores rurais com os consumidores urbanos, reduzindo a intermediação e fortalecendo a economia local. Esses mercados oferecem produtos frescos e de qualidade e promovem o comércio justo e o desenvolvimento rural.

Nos mercados de troca da Cidade do México, os cidadãos podem trocar resíduos recicláveis por produtos agrícolas frescos. Isso incentiva a reciclagem e apoia pequenos agricultores locais. Esse modelo tem sido muito bem-sucedido na promoção do consumo responsável e na redução de resíduos, além do fortalecimento da economia circular em nível comunitário.