Com uma Estratégia Nacional de Inteligência Artificial em andamento, o país centro-americano defende a integração da IA em setores-chave como a agroindústria, o turismo e a saúde, com um enfoque ético, inclusivo e sustentável. Orlando Vega, vice-ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação, sintetiza os avanços, desafios e oportunidades que o país enfrenta em seu caminho rumo a um desenvolvimento digital com rosto humano. Vega opina sobre a possibilidade de uma posição ibero-americana comum em matéria de IA.
Quais são os pilares da estratégia do país para integrar a inteligência artificial (IA) aos diferentes setores produtivos?
A Estratégia Nacional de Inteligência Artificial foi lançada em outubro do ano passado e estabelece um marco de ação centrado em dois grandes focos. O primeiro busca impulsionar a incorporação da inteligência artificial em setores estratégicos como a agroindústria, a manufatura e os serviços financeiros. O objetivo é fortalecer a competitividade e a eficiência por meio da adoção de tecnologias de IA que otimizem processos, automatizem tarefas e melhorem a tomada de decisões baseadas em dados.
O segundo foco está vinculado ao talento humano. É fundamental formar e preparar as pessoas para que possam se integrar a essa nova realidade. Por isso, a estratégia contempla alianças com instituições acadêmicas e o desenvolvimento de programas de capacitação. Além disso, inclui a criação do Centro Nacional de Excelência em Inteligência Artificial para pesquisa e desenvolvimento, que busca se posicionar como uma referência regional ibero-americana, fomentando a criação de soluções tecnológicas a partir de uma perspectiva local e participativa.
A infraestrutura é um eixo crucial no processo. Como a Costa Rica está avançando neste aspecto?
O país se encontra em um momento de implantação de redes 5G, um passo fundamental para consolidar uma infraestrutura digital robusta. Além disso, estamos estabelecendo um sistema de interoperabilidade de dados e fortalecendo nossas capacidades em computação e big data. Embora, por ora, não se priorize o desenvolvimento de grandes centros de dados estatais, o país conta com um modelo misto em que cinco operadoras locais complementam a cobertura das operadoras nacionais. Essa diversidade facilita a conectividade em zonas que historicamente estiveram desconectadas por razões geográficas ou demográficas.
Por exemplo, há distritos remotos onde as operadoras principais não encontram viabilidade comercial. Nesses casos, entram as operadoras regionais, que assumiram compromissos específicos para fornecer serviços nessas áreas, melhorando significativamente a cobertura nacional. Essa estratégia busca reduzir a desigualdade digital e garantir um acesso mais equitativo a tecnologias emergentes, como é o caso da inteligência artificial.
Existem iniciativas concretas em setores chave como a indústria, a educação ou o próprio setor público?
Sim, e são múltiplas. Uma das mais destacadas é o programa de Laboratórios de Inovação Comunitária, uma iniciativa orientada a fomentar o acesso à tecnologia em zonas rurais. O objetivo é instalar mais de 20 laboratórios em todo o país. Esses espaços estão equipados com ferramentas como drones, impressoras 3D, cortadoras a laser e kits de robótica. O interessante é que cada comunidade adapta o uso dos recursos conforme suas próprias necessidades e potencialidades.
Por exemplo, visitamos uma comunidade onde uma empreendedora dedicada à fabricação de sabonetes artesanais conseguiu reduzir em 80% o custo da embalagem de seus produtos, graças a um protótipo criado em um desses laboratórios. A nova embalagem, feita com madeira prensada, não só era mais barata, como também mais atrativa. Outro caso exemplar ocorreu em uma comunidade próxima a um vulcão ativo. Eles precisavam de apitos com altos níveis de decibéis para casos de evacuação, mas os preços no mercado eram proibitivos. O laboratório local os fabricou em impressoras 3D por uma fração do custo. Esses apitos, além disso, cumprem com todos os padrões de som necessários para emergências.as públicas, acompañar esa transición con responsabilidad, formación y visión a largo plazo.
Os Laboratórios de Inovação Comunitária fomentam o acesso à tecnologia em zonas rurais, são um motor de transformação comunitária e atraem jovens e empreendedores locais
Essas experiências demonstram que os laboratórios não são apenas centros de tecnologia, mas motores de transformação comunitária. Atraem jovens, empreendedores e líderes locais, e geram um efeito multiplicador na educação, no emprego e na resiliência local. Além de seu impacto social, esses projetos estão alinhados com uma estratégia mais ampla para promover a pesquisa aplicada em inteligência artificial. Por exemplo, lançamos recentemente uma chamada específica para empresas turísticas que quisessem incorporar soluções baseadas em IA. A resposta foi tão positiva que recebemos ligações do Ministério do Turismo e de outras agências governamentais interessadas em se somar à iniciativa. Isso mostra como a inteligência artificial pode gerar sinergias interinstitucionais e potencializar setores-chave como o turismo, no qual a Costa Rica tem uma vantagem natural.
Também estamos trabalhando em esquemas de financiamento público-privado para promover soluções inovadoras em setores como saúde e manufatura. Isso inclui incentivos fiscais, chamadas de inovação aberta e apoio a startups tecnológicas. O objetivo é construir um ecossistema onde a inteligência artificial seja um habilitador do desenvolvimento sustentável.
Já estão sendo vistas aplicações concretas de IA no setor público?
Sim, e um dos melhores exemplos é a plataforma de prontuário digital da Seguridade Social. Graças à inteligência artificial, essa plataforma melhorou a gestão de doenças crônicas e permitiu prever a demanda de medicamentos com maior precisão. Por exemplo, já é possível estimar com antecedência as necessidades farmacêuticas de uma população com doenças como diabetes ou hipertensão. Outro campo em que a IA é aplicada é o da cibersegurança. Estamos desenvolvendo sistemas que permitem identificar padrões incomuns e possíveis ameaças de forma antecipada. Essa capacidade de prevenção é fundamental para proteger infraestruturas críticas e garantir a confiança dos cidadãos nos serviços digitais.
As comunidades estão aceitando bem estas novas tecnologias? Existe uma curva de adoção visível?
A adoção está sendo muito rápida. Quando lançamos cursos sobre princípios básicos de inteligência artificial, passamos de dezenas para centenas e depois milhares de solicitações. Na última convocatória, encerrada em fevereiro, mais de 6.000 pessoas se inscreveram. Para um país do nosso tamanho, trata-se de um sinal claro do interesse e da abertura em relação a essas tecnologias. Além disso, a apropriação comunitária é real. Em cada laboratório de inovação que visitamos, encontramos histórias de transformação local. O mais importante é que se trata de soluções que nascem das comunidades e para as comunidades. Não é uma abordagem de “café para todos”, mas uma resposta personalizada que respeita a diversidade territorial do país.
Qual é a postura da Costa Rica com relação à regulação da inteligência artificial?
Nossa estratégia tem um princípio orientador que nos diferencia: a paz. Esse valor, profundamente enraizado na identidade costarriquenha, também guia nossa visão sobre o desenvolvimento tecnológico. A inteligência artificial deve estar a serviço das pessoas, nunca ser projetada para causar dano.
Acreditamos que uma regulamentação excessiva, especialmente se aplicada de forma prévia e indiscriminada, pode frear a inovação. Por isso, em vez de estabelecer um marco normativo rígido desde o início, estamos apostando na promoção de boas práticas. O Código Nacional de Tecnologias Digitais é uma ferramenta-chave nesse sentido. Ele obriga o setor público a cumprir padrões de qualidade, acessibilidade e experiência do usuário, e serve como referência para o setor privado.
“Nossa estratégia tem um princípio orientador que nos diferencia: a paz. Esse valor, profundamente enraizado na identidade costarriquenha, também guia nossa visão sobre o desenvolvimento tecnológico”
Que tipo de cooperação existe entre a Costa Rica e outros países da Ibero-América em matéria de IA?
A cooperação internacional é essencial. Participamos em iniciativas que promovem a colaboração em infraestruturas de pesquisa entre a América Latina e a Europa. Também assinamos a Carta Ibero-americana de Inteligência Artificial, que marca um compromisso comum para um desenvolvimento ético e responsável destas tecnologias.
Além disso, a Costa Rica forma parte do projeto Latam-GPT, liderado pelo Chile, este projeto busca desenvolver modelos de linguagem treinados especificamente em espanhol e português, com conteúdos relevantes para a região. Nossa contribuição tem sido facilitar dados e contextos locais que permitem enriquecer esses modelos com maior precisão e representatividade.
Vê possível uma estratégia ibero-americana comum de inteligência artificial?
Sim, mas isso requer o estabelecimento de bases sólidas. Antes de falar em uma estratégia comum, devemos trabalhar em três áreas fundamentais: cibersegurança, proteção de dados pessoais e gestão de dados transfronteiriços.
Na área de cibersegurança, a experiência da Costa Rica após os ataques sofridos em 2022 nos ensinou que não se trata de um gasto, mas de um investimento estratégico. Já estão sendo dados passos na região, como a validação mútua da assinatura digital entre países da América Central. Isso pode se estender a padrões comuns em proteção de dados e no uso ético das tecnologias. Uma estratégia comum também deve garantir o consentimento informado dos usuários e permitir que as pessoas tenham controle sobre seus dados. A supervisão e o cumprimento das normas devem estar claramente definidos. Caso contrário, estaríamos criando um cardápio sem ter nem mesa, nem cadeira, nem convidados.
70% dos participantes nos laboratórios de inovação são mulheres, um dado que rompe com a tendência tradicional de baixa participação feminina em carreiras STEM e que demonstra como a tecnologia pode ser uma ferramenta de empoderamento
Qual é a utilidade, para a Costa Rica, da Carta Ibero-americana de Princípios e Direitos Digitais?
É um marco muito útil para orientar políticas públicas. Por exemplo, promove a inclusão digital, a redução da desigualdade de gênero e a proteção de direitos em ambientes digitais. Em nossos laboratórios de inovação, por exemplo, 70% dos participantes são mulheres. Isso rompe com as tendências tradicionais de baixa participação feminina em carreiras STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, na sigla em inglês) e demonstra como a tecnologia também pode ser uma ferramenta de empoderamento.
A Carta também impulsiona o fortalecimento da cooperação regional. Compartilhar boas práticas e experiências bem-sucedidas pode evitar que cada país tenha que começar do zero. Na Costa Rica, acreditamos firmemente em “tropicalizar” as soluções: adaptá-las às nossas realidades sem perder de vista os padrões globais.
Qual é a importância de contar com modelos de IA treinados em espanhol, português e línguas indígenas?
É essencial. Uma IA multilíngue permite incluir populações que, de outra forma, ficariam excluídas. Além disso, é uma forma de preservar o patrimônio cultural e linguístico da região. As línguas indígenas estão em perigo de extinção, e a inteligência artificial pode ser uma ferramenta para conservá-las e difundi-las.
Há aplicações que poderiam facilitar o aprendizado dessas línguas por meio de telefones celulares, ou criar arquivos digitais que registrem vocabulários, expressões e usos culturais. Esse tipo de tecnologia não só democratiza o conhecimento, como também o protege e o transmite às futuras gerações.
Desde sua experiência no setor público, quais são os principais desafios que a Costa Rica enfrenta em matéria de IA?
O primeiro desafio é a infraestrutura tecnológica. Ainda existem regiões com conectividade limitada, e isso restringe o acesso a serviços baseados em IA, traduzindo-se em desigualdades que precisam ser corrigidas se aspiramos a uma transformação digital verdadeiramente inclusiva.
O segundo grande desafio é a formação e retenção de talentos. A Costa Rica forma profissionais de altíssima qualidade,
mas muitas vezes não conseguimos competir com os salários do exterior ou mesmo com os do setor privado nacional. No setor público, a rigidez salarial impede atrair e reter especialistas sênior em temas-chave como IA, big data ou cibersegurança.
O terceiro desafio é o marco regulatório. Ele deve ser suficientemente flexível para se adaptar às mudanças tecnológicas, mas sem perder de vista os direitos humanos e o bem-estar social. É um equilíbrio delicado, mas essencial.
Por fim, está a questão do financiamento em pesquisa e desenvolvimento. Apesar do interesse crescente, o investimento ainda é baixo. Precisamos fortalecer os mecanismos de financiamento, fomentar alianças público-privadas e promover uma cultura de inovação sustentada ao longo do tempo.
E, como a sociedade costarricense percebe a inteligência artificial? Existe consciência sobre seus usos e riscos?
A sociedade costarriquenha tem demonstrado uma grande capacidade de adoção de novas tecnologias. No setor de telecomunicações, por exemplo, passamos de 38 linhas móveis para cada 100 pessoas em 2008, para 150 linhas para cada 100 pessoas em apenas 15 anos. Essa abertura tecnológica também se reflete no interesse pela IA.
Antes de falar de uma estratégia ibero-americana comum em matéria de IA, devemos trabalhar em três áreas: cibersegurança, proteção de dados pessoais e gestão de dados transfronteiriços
Recentemente estive em uma universidade e todos os estudantes afirmaram ter usado ferramentas de IA em suas tarefas acadêmicas. Isso levanta novas discussões sobre ética, propósito e limites, mas também confirma que a IA já faz parte do cotidiano. Agora cabe a nós, a partir das políticas públicas, acompanhar essa transição com responsabilidade, formação e uma visão de longo prazo.