O financiamento internacional para o desenvolvimento está em um ponto de inflexão. Eva Granados Galiano, Secretária de Estado de Cooperação Internacional, alerta que o sistema atual “ficou aquém” do século XXI, e defende uma arquitetura financeira mais justa.
Às vésperas da Quarta Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento de Sevilha, a Espanha propõe reforçar o multilateralismo inclusivo e mobilizar recursos sem agravar o endividamento dos países mais vulneráveis da Ibero-América. Nesta entrevista, respondida por e-mail, a política espanhola promove uma nova abordagem baseada na equidade, sustentabilidade e eficácia, com propostas concretas para fortalecer o sistema, reformular os critérios de acesso ao financiamento e ampliar as alianças entre setores.
Qual é o objetivo concreto desta cúpula em Sevilha e que resultados o Governo da Espanha espera dela?
A Quarta Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4), que a Espanha acolhe na cidade de Sevilha, tem como objetivo renovar profundamente o marco global de financiamento para o desenvolvimento sustentável. Partimos de uma premissa clara: o sistema atual ficou aquém diante dos desafios do desenvolvimento e da implementação da Agenda 2030.
A Espanha, como país anfitrião, impulsionou para que esta Conferência não seja apenas uma revisão técnica da Agenda de Ação de Adis Abeba, mas sim um momento político que permita reafirmar um compromisso coletivo com o multilateralismo e a cooperação internacional, e reforçar as capacidades de mobilização de fluxos financeiros (públicos e privados) rumo a um desenvolvimento inclusivo, equitativo e sustentável.
O sistema atual ficou aquém diante dos desafios do desenvolvimento e da implementação da Agenda 2030
Nesse sentido, esperamos que a Conferência culmine em um novo marco global de financiamento ambicioso e operacional, que sirva como guia para todos os atores envolvidos: governos em todos os níveis, organismos multilaterais de desenvolvimento e instituições financeiras internacionais, além do setor privado, com importantes contribuições da sociedade civil organizada e da academia; que reforce um multilateralismo inclusivo, eficaz e efetivo; que promova uma arquitetura financeira internacional mais inclusiva, que reforce a voz e a representação dos países em desenvolvimento; que assegure compromissos tangíveis em áreas críticas como a luta contra a pobreza e as desigualdades, a sustentabilidade da dívida, o financiamento climático, a justiça fiscal e o combate aos fluxos ilícitos e à corrupção, a proteção social, a igualdade de gênero e a transformação digital com enfoque de direitos.
No processo preparatório rumo à Conferência de Sevilha, a Espanha, na qualidade de Secretaria pro tempore da Conferência Ibero-Americana, pronunciou em Nova York uma intervenção conjunta em nome dos 22 países ibero-americanos. Ali fez um apelo claro a favor de um sistema de cooperação que leve em conta uma métrica multidimensional do desenvolvimento, para além do PIB per capita. Poderia ampliar um pouco mais sobre esse posicionamento ibero-americano e a importância de medir o desenvolvimento de forma multidimensional?
Em nome dos 22 países ibero-americanos, no último 30 de abril em Nova York — no âmbito da quarta sessão do Comitê Preparatório da Conferência de Sevilha — fizemos um apelo firme e coordenado para repensar a forma como entendemos e medimos o desenvolvimento sustentável. O PIB per capita tem sido, durante décadas, o indicador hegemônico, mas demonstrou ser insuficiente. Ele não capta de maneira completa as múltiplas dimensões que afetam a vida das pessoas: desigualdades, acesso efetivo a serviços básicos, vulnerabilidades ambientais e climáticas, ou desafios em matéria de governança democrática, entre outras.
Defendemos acordos com métricas que capturem a natureza multidimensional do desenvolvimento sustentável e que considerem a capacidade institucional, os impactos das mudanças climáticas e as dinâmicas demográficas
Por tudo isso, defendemos acordos sobre o uso de métricas que capturem a natureza multidimensional do desenvolvimento sustentável, incluindo: indicadores de vulnerabilidade estrutural, como o índice de vulnerabilidade multidimensional (MVI); medidas contra a desigualdade e a pobreza, acesso a direitos e resiliência frente a crises; e considerações sobre capacidade institucional, impactos das mudanças climáticas e dinâmicas demográficas.
Além disso, em Sevilha lançaremos a Aliança Global Além do PIB, composta por países e entidades interessadas como a OCDE ou a UNCTAD, comprometidas com a integração de métricas mais completas do desenvolvimento sustentável nas políticas e na prática financeira.
Qual é o diagnóstico que a senhora faz do sistema atual de financiamento ao desenvolvimento?
O diagnóstico é claro e compartilhado: o sistema atual de financiamento para o desenvolvimento sustentável requer mudanças e um novo impulso no mais alto nível para ser capaz de responder adequadamente às necessidades reais dos países em desenvolvimento. Embora tenham ocorrido avanços desde as conferências anteriores sobre financiamento ao desenvolvimento — Monterrey, Doha e Adis Abeba —, as lacunas de financiamento para cumprir as metas acordadas no âmbito da Agenda 2030 são imensas, e não conseguimos avançar com a devida celeridade na mobilização real do financiamento do setor privado nem na implementação plena da agenda de eficácia.
Por que há essa necessidade de revisão do sistema?
Porque os desafios mudaram e se intensificaram: crises climáticas, pandemias, conflitos, desigualdades crescentes, sobre-endividamento e perda de confiança no sistema multilateral. Hoje, o financiamento ao desenvolvimento deve responder a um contexto de policrise, no qual os modelos tradicionais, baseados em transferências do Norte para o Sul ou exclusivamente na cooperação bilateral, mostram-se insuficientes. É urgente um sistema mais inclusivo, representativo e flexível, que canalize recursos públicos e privados para os verdadeiros desafios do desenvolvimento sustentável, priorizando as necessidades dos países e comunidades mais vulneráveis, para além do seu nível de renda.
Que mudanças estruturais são necessárias para que o financiamento ao desenvolvimento seja mais eficaz, sustentável e centrado nas prioridades regionais da Ibero-América?
Desde a perspectiva ibero-americana, acreditamos que a Quarta Conferência constitui uma oportunidade para apresentar uma proposta renovada e adaptada aos desafios globais atuais, capaz de contribuir para o avanço do diálogo multilateral no âmbito do Sistema das Nações Unidas e das instituições financeiras internacionais.
Os Estados membros da Comunidade Ibero-Americana defendem um sistema de cooperação internacional para o desenvolvimento que leve em conta uma métrica multidimensional que defina os “critérios de medição do desenvolvimento, a alocação da cooperação internacional para o desenvolvimento e a geração de instrumentos adequados para acompanhar os países, que assim o desejarem, em sua transição rumo ao desenvolvimento sustentável”.
Esta crise de confiança pode ser o catalisador para repensar o sistema, fortalecer a solidariedade e avançar rumo a um multilateralismo mais inclusivo, democrático e eficaz
Essa cooperação está ameaçada pelo atual cenário geopolítico e pelas críticas ao multilateralismo e ao próprio sistema de cooperação?
O contexto atual é complexo e coloca riscos reais, tanto para o financiamento ao desenvolvimento quanto para o multilateralismo como um todo. A fragmentação geopolítica, a ascensão de discursos protecionistas e a desconfiança nas instituições multilaterais podem enfraquecer ainda mais a cooperação internacional.
Mas também há uma oportunidade. Esta crise de confiança pode ser o catalisador para repensar o sistema, fortalecer a solidariedade entre povos, países e regiões, e avançar rumo a um multilateralismo mais inclusivo, democrático e eficaz, que escute e responda às realidades dos países em desenvolvimento, em toda sua diversidade.
Como Governo da Espanha, estamos apostando de forma decidida nessa renovação do sistema multilateral. Propomos um sistema de cooperação baseado na corresponsabilidade, na escuta ativa das prioridades dos países parceiros e na coerência de políticas para o desenvolvimento sustentável.
O que a Espanha propõe para reduzir a desigualdade no acesso ao financiamento dos países em desenvolvimento, e especialmente da Ibero-América?
A Espanha assumiu um compromisso firme com as lacunas no acesso ao financiamento concessional, que afetam muitos dos países que compõem a maior parte do espaço ibero-americano e que, apesar de seus avanços em desenvolvimento humano, continuam enfrentando grandes vulnerabilidades. Nossa proposta se baseia em vários eixos-chave:
- Reformar os critérios de acesso ao financiamento internacional: para além do PIB per capita. Um dos principais aportes da Espanha tem sido liderar o apelo a favor de uma medição do desenvolvimento que seja multidimensional. Apostamos por incorporar critérios como vulnerabilidade estrutural, desigualdade interna, resiliência às mudanças climáticas e fragilidade institucional para determinar o acesso a recursos concessionais. Isso permitiria que países ibero-americanos que hoje estão excluídos do financiamento em condições favoráveis possam acessar mecanismos adequados às suas necessidades reais.
- Promover uma arquitetura financeira mais inclusiva e representativa.
- Mobilizar alianças público-privadas para um financiamento sustentável com impacto social.
- Trabalhar por uma maior justiça fiscal, com sistemas fiscais progressivos e eficazes, capazes de investir em políticas sociais necessárias para melhorar as condições de vida dos cidadãos.
A Ibero-América, com sua diversidade e potencial, deve estar no centro desse novo pacto financeiro global.
Qual é a sua opinião sobre a crescente pressão para canalizar o financiamento ao desenvolvimento por meio do setor privado? Há controle suficiente sobre esses fundos?
A mobilização do setor privado é necessária, mas não pode ser nem o único caminho, nem uma solução automática. É inegável que os recursos públicos, sozinhos, não são suficientes para cobrir as lacunas de financiamento da Agenda 2030, e que precisamos multiplicar os esforços, também por meio do capital privado. Mas essa mobilização deve ocorrer sob regras claras, com transparência e garantias de impacto real.
A posição da Espanha parte de uma visão equilibrada, na qual o setor privado pode e deve ser um parceiro estratégico, especialmente em áreas como inovação, tecnologia, energias renováveis ou empreendedorismo social. No entanto, esse financiamento deve estar alinhado com as prioridades nacionais e demonstrar impacto no desenvolvimento sustentável, e não apenas rentabilidade financeira.
Por isso, propomos fortalecer a regulação e a padronização dos instrumentos financeiros mistos, priorizando a transparência e a participação local; reforçar os critérios de condicionalidade social e ambiental no uso de fundos públicos para atrair investimento privado; e impulsionar o desenvolvimento de métricas comuns de impacto, promovendo sua adoção entre bancos multilaterais e agências de desenvolvimento.
Em suma, o setor privado tem um papel, mas não pode substituir o protagonismo do setor público nem o compromisso político com os bens públicos globais. O financiamento ao desenvolvimento deve ser guiado pelos princípios de solidariedade, justiça social e sustentabilidade.
Quais mecanismos inovadores estão sendo discutidos em Sevilha para mobilizar recursos em grande escala sem aumentar a dívida dos países mais vulneráveis?
Este é um dos temas centrais da Conferência: como mobilizar recursos em escala massiva, mas sem agravar o sobre-endividamento que já enfrentam muitos países. Há um consenso de que não basta haver mais financiamento — é preciso que ele seja mais justo, acessível e sustentável. Entre os mecanismos discutidos, destacam-se:
- Instrumentos financeiros inovadores, como fundos de garantia e mecanismos de proteção frente a riscos climáticos ou econômicos.
- Exploração do uso estratégico dos Direitos Especiais de Saque do FMI, canalizados por meio dos bancos de desenvolvimento, para projetos com impacto em desenvolvimento e resiliência.
- Financiamento em moeda local para reduzir riscos cambiais, uma prioridade especialmente para as economias pequenas.
- Promoção de trocas de dívida por ODS.
- Aumento do apoio aos países para que melhorem a mobilização de recursos públicos nacionais e combatam a corrupção e os fluxos financeiros ilícitos.
A senhora acredita que os impostos globais (sobre transações financeiras, emissões, multinacionais) são uma solução viável para financiar o desenvolvimento sustentável?
A partir da Espanha, apoiamos o avanço rumo a um marco fiscal global mais justo. A viabilidade política dependerá da vontade coletiva, mas a necessidade é inegável, e já estamos vendo avanços na discussão sobre um marco fiscal internacional nas Nações Unidas, que busca garantir que as multinacionais paguem impostos onde geram valor. Também há avanços em relação ao impulso a impostos sobre emissões de carbono do transporte internacional ou sobre transações financeiras, que poderiam alimentar fundos globais para bens públicos como o clima ou a saúde.
A Espanha defende que esses instrumentos devem ter caráter redistributivo, e que os países ibero-americanos devem participar ativamente de sua concepção e governança.
Na prática, como os países ibero-americanos podem acessar fontes inovadoras de financiamento, como títulos sustentáveis, blended finance ou trocas de dívida por ação climática?
A chave está na criação de capacidades locais e institucionais para estruturar projetos bancáveis, sustentáveis e alinhados com os ODS. Nesse sentido:
- Apoiamos o desenvolvimento de Marcos Nacionais de Financiamento Integrado (INFFs), que permitem alinhar estratégias nacionais com instrumentos financeiros inovadores.
- Impulsionamos assistência técnica para o desenho e emissão de títulos verdes, sociais ou climáticos, inclusive em nível subnacional.
- Trabalhamos com parceiros multilaterais para facilitar o acesso ao blended finance, garantindo que os projetos tenham impacto real, participação local e prestação de contas.
Além disso, instamos os bancos multilaterais a simplificar e acelerar seus procedimentos, e os doadores tradicionais a assumirem mais riscos para desbloquear o investimento privado em projetos de alto impacto.
Que peso estão ganhando os novos atores (como a banca multilateral regional, fundos verdes ou investimento privado com impacto social) frente aos doadores tradicionais?
Cada vez mais, o sistema de financiamento ao desenvolvimento é multipolar e multilateral. Bancos regionais, fundos verdes e o investimento privado com impacto vêm ganhando protagonismo, e isso é positivo, se forem garantidos a coerência, o alinhamento com prioridades nacionais e a transparência. Os bancos regionais de desenvolvimento (como a CAF ou o BID) são essenciais para a Ibero-América por sua proximidade, conhecimento do contexto e capacidade de mobilizar capital local. Fundos como o Fundo Verde para o Clima ou o Fundo de Perdas e Danos oferecem novas oportunidades, embora ainda existam barreiras burocráticas que precisam ser superadas. Da mesma forma, o investimento de impacto cresce, especialmente em setores como energias renováveis, inclusão financeira e economia do cuidado.
Quais são os mecanismos de financiamento impulsionados ou a implementar para garantir a participação real desses países em desenvolvimento, por exemplo, da sociedade civil e em sua relação com o setor privado?
Acreditamos em uma abordagem de financiamento inclusivo e participativo. Por isso, propomos e apoiamos:
- Plataformas nacionais de coordenação do financiamento, lideradas por governos e abertas à sociedade civil, setor privado, agências internacionais e bancos de desenvolvimento.
- Mecanismos de orçamentos participativos e transparência fiscal, para garantir que os recursos cheguem a quem mais precisa.
- Apoio a ecossistemas de inovação e empreendedorismo social, especialmente liderados por jovens e mulheres, como motores de desenvolvimento territorial.
- Promoção de parcerias público-privadas de novo tipo, centradas em impacto, corresponsabilidade e sustentabilidade — e não apenas em rentabilidade.
Tudo pode ser resumido na ideia de que a inovação não é apenas técnica ou financeira: também é política e institucional. A região ibero-americana tem grande potencial para ser um laboratório de soluções de desenvolvimento que combinem justiça social, sustentabilidade e participação real.
Se tivesse que priorizar uma única medida para melhorar o acesso dos países ibero-americanos a recursos para o desenvolvimento, qual seria e por quê?
Reformar os critérios de acesso ao financiamento internacional para que reflitam a desigualdade e a vulnerabilidade ambiental, e não apenas o nível de renda. Hoje em dia, a grande paradoxo que enfrentam muitos países ibero-americanos é que são “ricos demais” para acessar financiamento concessional, mas vulneráveis demais para enfrentar sozinhos os desafios do desenvolvimento sustentável — especialmente em um mundo profundamente interconectado e com desafios profundamente transnacionais. Seria, em essência, reconhecer que o desenvolvimento não é apenas um número: é uma realidade complexa que exige justiça financeira, coerência política e solidariedade internacional.