A rede ‘De Abya Yala com amor’ mantém vivo o fogo das culturas originárias

A rede ‘De Abya Yala com amor’ mantém vivo o fogo das culturas originárias
A rede De Abya Yala com amor entrelaça-se com projetos afins, como o que possibilitou a criação coletiva do e-book 11.645 Indígenas e Diversidade para a Paz. Na foto, dez indígenas de diferentes etnias da Bahia (Brasil) celebram sua formação como Embaixadores Indígenas para a Diversidade e a Paz.

Diversos livros digitais reúnem pequenos tesouros de sabedoria ancestral de diferentes povos indígenas: desde o significado de símbolos sagrados e rituais, até reflexões filosóficas profundas e histórias de vida que revelam costumes milenares e diferentes cosmovisões.

Essas publicações, disponíveis na internet, são fruto de múltiplos encontros online —”fogueiras digitais”— entre representantes indígenas de vários países ibero-americanos que compõem a rede De Abya Yala com amor, uma verdadeira comunidade intercultural colaborativa, constituída com o apoio do Programa IberCulturaViva.  

Uma rede expansiva

Essa organização — formada em 2021 — é hoje um espaço de encontro e reflexão permanente, ao qual se somam indígenas de diferentes comunidades. “A rede para nós é um lugar de acolhimento, onde nos descobrimos existindo na diversidade. Cada um com seu próprio povo, com sua própria cosmovisão”, afirma Mariela Tulián, casqui curaca (autoridade política e espiritual máxima) da Comunidade Indígena Territorial Comechingón Sanavirón Tulián, localizada em San Marcos Sierras, Córdoba, Argentina.

De Abya Yala com amor foi uma das selecionadas nas chamadas de Apoio a Redes do Programa IberCultura Viva nos anos 2021, 2022, 2023 e 2024. Para Sebastián Gerlic, um dos principais incentivadores da rede transfronteiriça e presidente da ONG Thydewá (Bahia, Brasil), essa continuidade tem sido fundamental para o fortalecimento e expansão da rede.

De Abya Yala com amor conta com a participação constante de comunidades indígenas da Argentina, Brasil, Chile e Equador. Trata-se de uma rede aberta e dinâmica: “Convocamos as diferentes comunidades, que se somam a projetos específicos conforme suas disponibilidades”, explica Mariela Tulián. Assim, a rede já incorporou, até o momento, representantes de povos originários da Bolívia, Colômbia, México, Uruguai, Panamá e Paraguai.

Além de promover o intercâmbio cultural entre comunidades indígenas ibero-americanas, essa associação compartilha seus saberes com o mundo não indígena. A convicção de que as sabedorias originárias têm muito a contribuir para o entendimento e a paz entre todos os habitantes da terra explica os esforços da rede para difundir suas mensagens. A apropriação das tecnologias de informação e comunicação não só permitiu tecer esta rede multicultural, mas também transcender seus próprios limites. Todos os livros eletrônicos publicados até agora demonstram essa vontade de oferecer o que há de mais precioso a quem deseje receber. Em suma, trata-se de “lançar sementes para os povos indígenas e para o mundo inteiro”, diz Sebastián Gerlic. Sementes que requerem tempo e constância para germinar, razão pela qual ele também considera fundamental o apoio continuado do IberCultura Viva. “De Abya Yala com amor nasce e sobrevive com o apoio do IberCultura Viva”, acrescenta o presidente da ONG Thydêwa.

O caminho percorrido

Até agora, a rede De Abya Yala com amor publicou vários e-books, disponíveis online, e já está trabalhando no próximo. Todos foram desenvolvidos em numerosas “fogueiras digitais”, que, como explica Mariela Tulián, são “os pontos de encontro digitais que nos reúnem para compartilhar nossos saberes e memórias orais, nossas emoções… do cotidiano ao mais profundo”. A rede também produziu uma série de vídeos curtos (“faíscas”) que mostram momentos das fogueiras digitais. Esse material está disponível no canal do Youtube de Mensagens da terra. 

Para entender a trajetória da rede, é preciso voltar a 2016. Naquele ano, Sebastián Gerlic e Mariela Tulián se encontraram pela primeira vez na Argentina, graças ao Programa de Intercâmbio entre Pontos de Cultura Indígena lançado pelo IberCultura Viva. Um encontro multicultural que, segundo a casqui curaca, permitiu sair do isolamento geográfico e começar a colaborar com outras comunidades. Aí encontra-se a semente da rede De Abya Yala com amor, que aproveita a vasta experiência da ONG Thydêwa na apropriação indígena de tecnologias com fins educacionais.

A Cultura Viva completa 20 anos

Já passou uma década desde o lançamento do Programa IberCultura Viva, que apoia, por meio de chamadas públicas, tanto iniciativas governamentais quanto de organizações comunitárias para fortalecer as políticas culturais de base comunitária dos países ibero-americanos. A criação do IberCultura Viva foi proposta pela Secretaria-Geral Ibero-Americana (SEGIB) e pelo Ministério da Cultura do Brasil com base na experiência do programa Cultura Viva do Brasil que já cumpre 20 anos. Ou seja, em 2024 celebram-se dois aniversários: um duplo motivo para comemorar.

“É uma alegria para a Política Nacional Cultura Viva completar 20 anos no Brasil e para o Programa IberCultura Viva 10 anos na região, por ser uma poderosa iniciativa que implementa ações conjuntas para reconhecer e promover a cultura comunitária que transforma a vida das pessoas nos territórios, conecta nossas memórias e histórias, e, principalmente, amplia o sentido de pertencimento à região ibero-americana, somando estratégias comuns em busca do bem viver”, diz Márcia Rollemberg, atual presidente do IberCultura Viva e secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura do Brasil (MinC).

Márcia Rollemberg destaca ainda que o fato de participar na construção deste espaço de diálogo e cooperação entre os 12 estados membros e as diferentes organizações culturais “nos permite somar capacidades, desenvolver uma gestão participativa e compartilhada com a sociedade civil e, consequentemente, garantir melhor acesso aos direitos culturais de maneira universal”.

Alguns anos depois, é publicado o primeiro e-book que leva o nome da rede: De Abya Yala com amor. Foi um dos frutos do projeto “Diversidade Indígena Viva”, com colaboração da Fundação Intercultural Guanchuro (Equador), da ONG Thydêwa (Brasil) e o apoio do Programa IberCultura Viva. A publicação reúne 15 membros de comunidades indígenas da Argentina, Brasil e Equador. Foram produzidos 51 vídeos curtos (“faíscas”) e várias “fogueiras digitais”.

O segundo e-book, De Abya Yala com amor II, contou com os mesmos apoios e incluiu as vozes de representantes de comunidades indígenas de sete países: a Argentina, Brasil e Equador somaram-se Bolívia, Chile, Colômbia e México. Representando 12 povos originários, participaram dessa edição 18 indígenas como autores e ilustradores. Vários encontros virtuais foram realizados e foram produzidos 22 vídeos curtos.

Imagine. A pequena Francisca em Abya Yala é o nome do terceiro e-book, um dos resultados do projeto “Apropriação Indígena da Inteligência Artificial”, que também contou com o apoio do IberCultura Viva. “Não aprendemos apenas sobre IA, mas também identificamos estereótipos existentes para construir respeitando nossas próprias vozes”, explica Mariela Tulián. Nesta cocriação, participaram 11 indígenas, a maioria artistas visuais, pertencentes a nove nações originárias da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Colômbia. Este livro, de grande riqueza visual, narra os sonhos e aventuras da pequena Francisca pelos diversos povos de Abya Yala.

Em 2024, a rede trabalha em mais dois e-books. O quarto, lançado em outubro, 11.645 Indígenas e Diversidade para a Paz, resulta do trabalho colaborativo de 32 indígenas de 20 comunidades do Brasil, três da Argentina e uma do Equador. Destinado a estudantes de ensino médio no Brasil, oferece valiosos materiais pedagógicos que possibilitam conhecer as culturas indígenas de perto, dissolvendo preconceitos e promovendo uma sociedade mais inclusiva. Seu título faz referência à Lei 11.645/2008, que obriga o ensino da história e cultura indígena e afro-brasileira nas escolas.

O quinto e-book, com o principal apoio do Programa IberCultura Viva, reúne inúmeros indígenas ligados a organizações da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Equador, e será publicado em dezembro de 2024. A rede também realiza oficinas sobre escrita, vídeos, arte digital e design.

Os três primeiros e-books publicados pela rede De Abya Yala com amor, com o apoio do IberCultura Viva, estão disponíveis online.

Sementes aos quatro ventos, sementes que germinam 

O fato de a rede ter se consolidado como um espaço de encontro e reflexão permanente, aberto às comunidades indígenas ibero-americanas, gera frutos diversos e de longo alcance. Um claro exemplo é a constituição da Escola Libre Abya Yala, que oferece cursos online gratuitos para indígenas, em português e espanhol, e já reúne 200 indígenas do Brasil e 50 de outros países.

A Escola conta atualmente com apoios importantes, como o do Ministério da Cultura do Brasil e da Secretaria de Cultura do Governo da Bahia. A rede interage com a Escola, provocando novos entrelaçamentos e sinergias.

Em suma, a rede fortalecida ao longo do tempo não apenas realiza suas próprias iniciativas, mas também inspira e colabora com outros projetos de organizações afins. Como diz Mariela Tulián: “A Rede De Abya Yala com amor está sempre crescendo, trabalhando ininterruptamente, de forma constante. Para nós, irmãos e irmãs indígenas, já é um lugar de pertencimento. Por isso a rede precisa continuar”.

A experiência de Claudia Herrera, da Comunidade Indígena Huarpe Guaytamari

Claudia Herrera é omta (autoridade) de uma comunidade huarpe localizada na Argentina, que participou na rede De Abya Yala com amor.

Liliana Claudia Herrera Salinas é o nome completo dessa ativista dos direitos indígenas, poeta, escritora e cantora em idioma originário. Ela é omta (autoridade) de uma comunidade indígena huarpe localizada em Mendoza (Argentina), vice-presidente da Organização de Nações e Povos Indígenas na Argentina (ONPIA), cofundadora da organização de Povos Indígenas de Mendoza “Martina Chapanay” e membro do Movimento Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária. Ela participou dos dois primeiros livros digitais da rede De Abya Yala com Amor. “Foi maravilhoso usar a tecnologia para compartilhar nossos saberes nas fogueiras digitais. Elas nos permitiram ampliar nosso conhecimento sobre outras comunidades e povos indígenas e suas cosmovisões, e confirmar que todos estamos entrelaçados pelo respeito à vida e pelo amor. A partir daí, refletimos sobre quais mensagens gostaríamos de transmitir a um mundo que atravessa diversas crises, incluindo a climática”, afirma a omta huarpe.

Sobre os livros digitais publicados pela rede, ela acredita que são “uma verdadeira oportunidade para dizer à humanidade que os povos indígenas não são apenas passado: estamos vivos, somos presente e futuro. Por exemplo, até algumas décadas atrás, a história oficial afirmava que meu povo huarpe estava extinto, e isso não é verdade”. Ela também destaca a necessidade de continuar com esse trabalho “porque ainda há muitas comunidades indígenas cujas vozes não são ouvidas”. Além disso, espera que as mensagens dos povos indígenas cheguem aos espaços de tomada de decisão “que afetam toda a humanidade e a Mãe Terra, pois temos saberes que podem contribuir para o bem-estar”.

Antes de participar da rede De Abya Yala com amor, Claudia Herrera contou com o apoio do programa de Intercâmbio do IberCultura Viva para participar do 3º Congresso Latino-americano de Cultura Viva Comunitária, em Quito, em 2017. Lá, ela teve o primeiro contato com o Movimento de Cultura Viva. Representava a “Raízes Ancestrais”, a primeira produtora audiovisual indígena na Argentina. A participação de representantes de povos originários no Congresso “nos permitiu mostrar que, dentro do Movimento de Cultura Viva da América Latina, não poderia faltar a presença das culturas indígenas, porque justamente somos culturas vivas e comunitárias. Além disso, pudemos contribuir com nossos saberes para que a proposta que surgiu do Congresso fosse mais ampla e coletiva”, comenta. Foi ali que se lançaram as bases para o próximo Congresso, realizado na Argentina, com o tema “Territórios para o Bom Viver“, que captava justamente o espírito das cosmovisões indígenas em relação ao respeito pela natureza e por todas as formas de vida.