O doutor Joel de Andrade, arrasta um pouco os R e os S ao falar em um espanhol quase perfeito. Só algum falso amigo o delata como brasileiro. Algo que não ocorre, no entanto, em seu trabalho como coordenador do Centro de Transplantes de Santa Catarina, sul do Brasil (7,3 milhões de habitantes), no sul do Brasil. Ali, ele tem aplicado, há mais de quinze anos, um modelo, o da Organização Nacional de Transplantes espanhol, que inspirou a Rede/Conselho Ibero-americano de Doação e Transplantes, com a mesma precisão com a que emprega o idioma: fazendo-o seu, melhorando-o, valorizando-o.
Foi em 2007 quando Andrade ancorou no hospital de la Fe de Valencia, na Espanha. Ali descobriu, em uns meses, o que desde então seria um dos motores da sua vida: como conseguir melhorar um sistema que permita não só aumentar o número de doações, senão também melhorar a preparação e o trabalho dos profissionais brasileiros responsáveis de fazê-lo possível. “Cada detalhe que via pensava: isso pode ser feito no Brasil…” Assim, reuniu sete recomendações para tentar converter sua realidade em uma mais próxima ao exemplo espanhol. Entre elas: desenvolver a coordenação de transplantes em todos os hospitais; adequar o número de UTI…, investir em educação… Os resultados não se fizeram esperar, ainda que ele diz terem sido “pouco a pouco”. De 11,9 doações por milhão de habitantes em 2005, passaram a mais de 40 em 2017 e em 2021 uma cifra próxima à da Espanha (40,1 por milhão de habitantes). Tudo isso na sanidade pública. Em 2007, segundo cifras publicadas na imprensa brasileira, de cada 10 entrevistas realizadas a familiares de pacientes diagnosticados de morte cerebral em seu país, 7 se negavam a autorizar o procedimento. Este número caiu para três em 2021, ou seja, a negativa para a doação de transplantes que era de 70% caiu a 31%, tudo graças ao empenho do doutor de Andrade. E tudo, insiste, graças ao trabalho em rede.
Não há dinheiro suficiente que possa tentá-lo a abandonar seu posto. Pedem por ele desde todos os cantos do país e também desde o estrangeiro para, nessa colaboração em rede, aprender de seu conhecimento e experiência. Mas, principalmente, resulta impossível não se emocionar ante sua devoção e dedicação. Diz que sente “imensa gratidão” para com aqueles que o ajudaram neste périplo que transformou o sistema de doações no Brasil, ao qual outros países da rede ibero-americana olham, agora, como exemplo. “Os modelos não podem ser repetidos, porque os países e os sistemas de saúde são diferentes. Lá onde o sistema de saúde é frágil, o de transplantes é frágil”, mas muito pode ser feito.
Aliança, um programa de experiências compartilhadas
Joel De Andrade, o intensivista brasileiro é um dos 559 profissionais de 19 países latino-americanos que conformam a Rede/Conselho Ibero-americano de Doação e Transplante (RCIDT), que participou desde 2005 no Programa Aliança na Espanha, um espaço projetado para que os especialistas se familiarizem com o modelo espanhol de doação e transplantes.
O Programa Aliança, organizado pela Organização Nacional de Transplantes (ONT), conta com o aval da Comissão Permanente de Transplantes do Conselho Interterritorial do Sistema Nacional de Saúde e da Rede/Conselho Ibero-americano de Doação e Transplante (RCIDT), cuja presidência e secretaria permanente é ostentada pela ONT desde o ano 2005. Aos profissionais da América Latina formados no programa, se somam os mais de 200 que se formaram através de plataformas digitais, graças à colaboração da ONT com a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID), no marco de seu Plano Intercoonecta, segundo dados do ministério de Saúde espanhol.
Ele conseguiu isso em Santa Catarina, um pequeno exemplo do muito que pode se fazer através da cooperação em rede, insiste. No Brasil, esta região se converteu em referência e lidera as estatísticas de doação de órgãos. Nos últimos 18 anos, este estado brasileiro alcançou as cifras mais altas do país, mas outros dentro do gigante ibero-americano seguiram seu exemplo. Menciona o estado do Paraná, ao norte do seu estado, que compartilha seu sucesso e melhora no número de doações anualmente. Coloca-os como exemplo da importância do trabalho e da colaboração em rede. “Em 2010 nos contataram porque queriam replicar o sucesso que estávamos tendo. Nós lhes passamos tudo”. No Paraná queriam incidir na propaganda para a população como forma de conscientizar os doadores. O médico os tirou do erro. “Como você convence uma população a doar?”, pergunta o intensivista: Através da educação. A educação do pessoal de coordenação e dos sanitários. Deve-se aprender a “comunicar em situações críticas, comunicar com empatia, acolher…” Seu sucesso radica, diz, em ter realizado todo o trabalho com um pé apoiado na educação. “O Curso de Comunicação Informativa em Situações Críticas foi uma das primeiras práticas do modelo espanhol que implementamos”, detalha por videoconferência. “Ensinamos os profissionais da saúde como falar com as famílias no momento em que vão lhes dar a pior notícia de todas, a morte e como fazê-lo, como mencionava antes, com empatia”. Uma empatia que o mantém com a certeza da relevância de um trabalho que lhe dá orgulho de que seus dois filhos queiram emular.
Fora do Brasil as relações com a Argentina, com o Peru, com o Chile foram se fortalecendo também. A Argentina, explica o especialista, é provavelmente um dos países com que mantém um vínculo mais estreito, porque com o Uruguai, são os que têm “um sistema de saúde mais estruturado”. Onde “não existe o básico” não pode se construir algo mais complexo. “Viram os nossos resultados e não deixam de reconhecer o quanto são bons e desejam chegar aí”, conclui.